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Editado por Harlequin Ibérica.

Uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2015 Wendy Blythe Gifford

© 2016 Harlequin Ibérica, uma divisão de HarperCollins Ibérica, S.A.

Rumores na corte, n.º 18 - Dezembro 2016

Título original: Whispers at Court

Publicado originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

 

Reservados todos os direitos de acordo com a legislação em vigor, incluindo os de reprodução, total ou parcial.

Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Books S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, carateres, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos de negócios (comerciais), acontecimentos ou situações são pura coincidência.

® Harlequin, Harlequin Internacional e logótipo Harlequin são marcas registadas propriedades de Harlequin Enterprises Limited.

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Imagem de portada utilizada com a permissão de Harlequin Enterprises Limited. Todos os direitos estão reservados.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-9232-3

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Nota da Autora

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Capítulo 22

Epílogo

Posfácio da Autora

Se gostou deste livro…

Nota da Autora

 

PARA A maior parte dos filhos da realeza, o curso do amor verdadeiro não só “nunca fluiu naturalmente”, mas também nem é esperado que aconteça. Tipicamente, um casamento real era mais como a assinatura de um tratado do que uma celebração de amor.

Mas o rei Eduardo III, que governou a Inglaterra durante a maior parte do século XIV, tinha uma preferência pela filha mais velha. E o romance dela com um prisioneiro de guerra francês – ou um refém – é uma das histórias de amor mais surpreendentes da Idade Média.

Hoje em dia, a simples palavra “refém” causa arrepios de medo. Mas durante a guerra medieval entre França e Inglaterra, um elaborado conjunto de regras, com bases econômicas bem definidas como em um acordo de cavalheiros, regia a captura dos prisioneiros em batalhas. O refém era mantido sob custódia até que um resgate fosse pago, mas era tratado de acordo com a nobreza de sua posição, assim como se esperava que também se portasse de forma condizente. Em troca, alguns combatentes franceses mantidos na corte do rei inglês recebiam um tratamento, digamos, “régio”, em todos os sentidos.

Cecily, condessa de Losford, não tem simpatia pelos reféns franceses, os quais ela considera responsáveis pela morte de seu pai, e portanto, desaprova o namorico da princesa com um deles. Numa tentativa de pôr fim aos Rumores na Corte, ela forma a mais improvável das alianças com Marc de Marcel, um refém francês que há muito tempo descobriu que, para alguns de seus companheiros, a honra nada mais é do que uma fachada. No entanto, enquanto tentam manter a princesa inglesa e o lorde francês separados, Cecily e Marc acabam se tornando perigosamente próximos, até que, por fim, terão de escolher entre as exigências da honra e os desejos do coração.

Capítulo 1

 

Smithfield, Londres – 11 de novembro, 1363

 

MON DIEU, como essa ilha é fria.

O vento gélido afastou o cabelo da testa de Marc de Marcel e penetrou na cota de malha pela gola. Ele deu uma olhada para os cavaleiros do outro lado do campo, imaginando qual seria seu oponente e quem enfrentaria seu amigo francês.

Bem, não faria nenhuma diferença.

– Derrubarei qualquer um do cavalo – murmurou ele.

– O código de conduta dita que a luta deve consistir de duas partes, a primeira com três golpes com a lança – disse o lorde de Coucy –, a segunda com três golpes com a espada. Só então o vencedor será declarado.

Marc suspirou.

Era uma pena as justas terem se tornado tão enfadonhas. Ele bem que gostaria de matar outro maldito inglês.

– Isso é desperdiçar a força do cavalo, e a minha.

– É melhor não ofender aqueles que nos capturaram, mon ami. Se cooperarmos, nossa estada aqui será bem mais tolerável.

– Somos reféns. É impossível tornar nossa estada tolerável.

– Ah, as damas têm esse poder. – De Coucy inclinou a cabeça na direção da arquibancada. – Elas são très jolie.

Marc olhou na direção das damas, sentadas à direita do rei Eduardo. Impossível de distinguir uma da outra. A rainha devia ser aquela vestida com uma capa lilás com bordas de pele, enquanto as outras vestiam tons similares de violeta e cor de canela, pareciam um borrão colorido… com uma exceção. Uma dama de cabelo escuro adornado com um arco de ouro olhou na direção dele com os braços cruzados e o cenho franzido. Mesmo à distância, ele reconheceu que ela estava tão aborrecida quanto ele, como se estivesse desprezando tudo e todos.

– Bem, o sentimento é mútuo.

Marc deu de ombro. Les femmes Anglaise não eram de sua conta. Havia dois outros monarcas visitantes ao lado do rei inglês Eduardo, supervisionando a liça do torneio.

– Quero impressionar les rois e não as damas.

– Ah, um cavaleiro sempre tenta impressionar as damas – disse o amigo de cabelo escuro, com um sorriso. – Essa é a melhor forma de espantar os homens delas.

Marc se encantara com a habilidade daquele jovem, Enguerrand, lorde de Coucy, em matar o inimigo com um machado; ele era igualmente competente em entoar uma chanson para as damas em seguida. Marc o tinha ensinado a lutar, mas não a cantar.

– Como é que você consegue cumprimentar e sorrir para seus captores?

– Isso é para manter a honra da cavalaria francesa, mon ami.

Enguerrand estava falando em preservar a ideia de que os cavaleiros cristãos viviam de acordo com o código de conduta. E Marc bem sabia que era uma falácia. Os homens falavam em fidelidade aos princípios, mas faziam o que bem entendiam.

– A honra francesa morreu em Poitiers.

Durante a Batalha de Poitiers, os comandantes franceses, inclusive o filho mais velho do rei, fugiram covardemente, deixando o monarca para lutar sozinho.

Enguerrand balançou a cabeça.

– Não lutamos mais por isso.

Mas Marc lutava ainda, apesar de a guerra já ter terminado e a trégua, assinada. Ele era refém dos les Anglais, preso naquele lugar estrangeiro gelado. O ressentimento chegava quase a estrangulá-lo.

O arauto interrompeu os pensamentos dele ao dar as ordens aos dois grupos. Enguerrand lutaria primeiro contra o maior cavaleiro do grupo oponente. Pelo menos seria uma luta digna contra o inimigo.

Para ele sobrara um rapaz mais novo. Se não tomasse cuidado, ele seria capaz de matá-lo. Qual seria seu humor de hoje? Estava cuidadoso?

POR TODOS os santos, como está frio!

Lady Cecily, condessa de Losford, percebeu sua respiração se condensar enquanto olhava para o campo do torneio. A liça estava enfeitada com bandeirolas e faixas vermelhas, azuis, douradas e prateadas. A festa de cores se estendia também às capas dos cavaleiros e aos paramentos dos cavalos. Era um espetáculo digno da realeza. Eduardo III reinava com toda a majestade depois da vitória contra a França.

Cecily ergueu o queixo, esforçando-se para manter a postura digna de sua posição.

É o seu dever.

Ela ainda ouvia a voz dos pais na memória.

– Não é, Cecily?

Ela olhou para Isabella e imaginou o que a filha do rei devia ter dito. A princesa estava acompanhada por outras seis damas. Mas era ela que sempre se distraía.

– Estou certa de que tem razão, milady. – Esta era sempre uma boa resposta.

– É mesmo? – A princesa sorriu. – Achei que você não ligasse para os franceses.

Cecily suspirou. Isabella adorava brincar quando percebia que ela estava distraída.

– Lamento, mas eu não estava ouvindo.

– Eu disse que os franceses parecem ferozes.

Cecily acompanhou o olhar da princesa. Do outro lado da liça, havia dois franceses montados em seus cavalos, ainda sem o elmo. Um deles ela nunca tinha visto. Era um cavaleiro alto, louro e esbelto. Tal qual um leopardo. Uma fera que podia matar alguém com um salto.

– Ele é bonito, você não acha?

Cecily corou, envergonhada por Isabella ter percebido que ela olhava para o refém francês.

– Não gosto de homens de cabelo claro.

Isabella não escondeu o sorriso.

– Estou falando do moreno.

Ah, aquele que ela mal tinha olhado. Se bem que não faria diferença qual era o cavaleiro em questão. Cecily desprezava ambos. Apesar do código de conduta, ela não entendia por que o rei permitia que reféns franceses participassem do torneio. Afinal, eles eram apenas um pouco melhores dos que prisioneiros comuns e deviam ter os privilégios negados.

– Eles ficarão mais bonitos quando forem derrubados de seus cavalos e cobertos de lama.

Isabella e as outras damas gargalharam com o comentário. A Rainha Philippa franziu a testa para que elas contivessem a alegria exacerbada.

Cecily sorriu. Ainda bem que tinha respondido à pergunta com uma brincadeira. O que as outras não sabiam era como ela falava sério. Na verdade, era uma pena que as justas tinham se tornado tão tediosas e cerimoniosas. Ela bem que gostaria de ver sangue francês derramado.

– Eu gostaria de saber quem vai enfrentar Gilbert – disse Isabella.

Cecily olhou para a extremidade oposta da liça onde Gilbert, agora chamado de sir Gilbert, empinava-se sobre o cavalo com esperança de ganhar. O amuleto dela, um lenço de seda violeta, flutuava na ponta da lança dele.

Do lado oposto estava o cavaleiro francês louro, coberto por uma cota de malha e pela armadura prateada, montado num cavalo de guerra, parecendo assustador. Ela não sabia muito sobre batalhas, mas a maneira como estava empertigado, segurando a lança, passava a impressão de alguém confiante e seguro, possível de perceber através da armadura.

– Tenho certeza de que Gilbert pode derrubar qualquer um deles – disse ela.

– Não seja tola – Isabella comentou como se não acreditasse. – Este é o primeiro torneio de Gilbert. Ele será abençoado se não derrubar a lança. Por que você deu a ele seu amuleto?

– Ele me pareceu tão desamparado. – Cecily suspirou.

Isabella franziu o cenho.

– Você está considerando ele como marido?

– Gilbert? – Cecily começou a rir. – Ele é mais um irmão.

Gilbert tinha começado como escudeiro do pai dela. Ele era apenas dois anos mais velho que Cecily. Além disso, quando o rei selecionasse um marido para ela, não seria apenas um mero cavaleiro de classe baixa, mas sim alguém poderoso e confiável o suficiente para ter a chave de Londres.

Mas quem?

Lembrando-se do assunto, ela inclinou-se para o lado e cochichou no ouvido de Isabella:

– Seu pai falou alguma coisa sobre o meu casamento?

Desde a morte do pai, Cecily havia se tornado uma herdeira elegível. Estava com quase 20 anos e já tinha passado da hora de ela e o Castelo de Losford serem entregues a um homem escolhido pelo rei.

– Os convidados reais dominaram a atenção do meu pai – Isabella respondeu, meneando a cabeça. – O rei de Chipre, Jerusalém, não sei bem de onde ele é, quer levar meu pai para uma Cruzada. – Ela girou os olhos. – Imagine só! Na idade dele! Já é um esforço supremo ele conseguir liderar a final do torneio de hoje.

Cecily teve vontade de dizer que ao menos o rei estava vivo, mas segurou a língua.

– Além do mais… – Isabella massageou os dedos frios de Cecily – … não quero que você vá embora logo.

Mas na verdade não era tão “logo” assim. Fazia três anos que o pai de Cecily tinha morrido na luta contra os franceses. E a primeira missa anual da morte de sua mãe ocorrera há menos de dois meses. Já havia passado o período de luto. E ainda assim…

Cecily sorriu para Isabella.

– Você só precisa de uma companhia para suas aventuras.

Isabella estava com incríveis 31 anos, com tempo de sobra e dinheiro para se divertir como quisesse na corte, e também não era casada.

– Faz muito tempo que você está de luto. Acho que deveria se divertir um pouco mais antes de se casar.

As trombetas soaram anunciando a próxima justa. O arauto proclamou as regras para o combate simples, mas Cecily não se animou. Ao contrário, franziu o cenho para os cavaleiros franceses. Deus não devia ter permitido que eles vivessem quando seu pai havia morrido.

 

* * *

 

O ESTANDARTE vermelho, branco e azul de De Coucy tremulava com a brisa. Ele sorriu para Marc, demonstrando o quanto estava ansioso pela luta.

– Que dia glorioso! O rei acha que nos impressiona! Mas é ele que ficará impressionado, n’est pas?

Marc abriu um sorriso irônico. Os dois já haviam lutado lado a lado por muitas vezes. As memórias aumentaram as expectativas deles.

– Você vai derrubá-lo na primeira ou na segunda vez?

Enguerrand colocou o elmo e ergueu a luva numa breve saudação, mostrando três dedos para Marc.

Marc riu. Enguerrand não deixava nunca de ser um cavaleiro perfeito, bem diferente dos outros amigos franceses.

Mesmo assim, Marc seguiu o amigo com o olhar, como se sua total atenção assegurasse o resultado. Mesmo já tendo um título, terras e uma posição garantida como líder, Enguerrand tinha a aparência de um jovem aprendiz.

No primeiro ataque, Enguerrand atingiu em cheio o escudo de seu oponente. No segundo, permitiu que o outro tocasse seu escudo, mas, virando-se em seguida, deixou claro que tinha sido um golpe fraco que não rendeu muitos pontos.

Apesar de ter uma técnica bem superior, ele lutou de forma a fazer o oponente achar que tinha acertado o golpe.

Por fim, no terceiro ataque, Enguerrand desferiu um golpe perfeito que arremessou a lança do outro para o meio do campo.

Os escudeiros correram para ajudar seus senhores a desmontar, entregando-lhes as espadas para a próxima fase de combate. Mais uma vez Enguerrand fez o combate parecer uma dança intrincada. O primeiro golpe foi certeiro, mas ele não derrubou o oponente. No segundo, ele se deixou abater, deixando evidente que não havia sido nada sério. No terceiro, ele derrubou a espada do oponente, forçando-o a se dar por vencido.

Os espectadores aplaudiram de pé, foi uma ovação maior do que Marc esperava de seus raptores.

Enguerrand voltou para o lado do amigo com o elmo na mão e um sorriso no rosto. Ele havia dito que derrubaria o oponente em três golpes e cumpriu com a palavra.

– Muito bem, meu amigo – cumprimentou Marc. – Se bem que o último golpe foi demais.

Enguerrand riu.

– Só se eu tivesse a intenção de matá-lo.

Marc olhou para o jovem cavaleiro que o enfrentaria. O rapaz estava perdido dentro da armadura e parecia ter acabado de ganhar as primeiras esporas.

– É um insulto ter de lutar com um menino. – Marc viu o pequeno e corajoso lenço violeta na ponta da lança do outro cavaleiro. – Você disse que preciso impressionar as damas. Será que a dona daquele lenço ficará impressionada se seu amuleto terminar pisoteado pelos cavalos?

– Comporte-se, mon ami.

Marc suspirou. Esperava-se que ele lutasse como De Coucy, bem o suficiente para honrar sua posição, seu amigo e seu país, mas não o suficiente para machucar o anglais. Assim ditava o código de conduta. Por um breve momento, ele sentiu pena do jovem cavaleiro. Ainda lhe restavam algumas migalhas de cavalheirismo. Muito poucas, porém.

Ele podia vencer as duas fases sem muito esforço e permitir que o oponente saísse de campo com o orgulho intacto. No entanto, homens costumam dizer uma coisa e fazer outra. Eles são capazes de fazer um juramento de lealdade e deixar seus postos durante uma batalha. Juram proteger uma mulher, mas, em vez disso, as violentam.

Eles não ligam para a honra, apenas fingem. Algumas vezes parecia que a vida era uma enorme dissimulação, todos fingindo ser o que não eram na realidade.

Marc estava cansado de fingimentos. E estava disposto a protestar da única maneira que podia. Não mataria o rapaz, isso não. Mas se divertiria fazendo-o passar vergonha.

O alazão de Marc começou a se movimentar, batendo os cascos contra a terra dura e fria. Quando o juiz deu sinal para que a batalha começasse, ele esporeou o cavalo e seguiu em frente.

CECILY SE recusou a aplaudir a vitória do primeiro francês, até Isabella cutucá-la, dizendo:

– Você não acha que o francês moreno lutou como um mestre?

– Como você pode dizer alguma coisa boa de um francês? – indagou Cecily, aplaudindo muito contra a vontade.

– Você fala como se ele fosse infiel. Esqueceu-se que meu pai tem sangue francês?

Sim, o sangue francês que corria nas veias reais tinha dado ao rei Eduardo o direito de conclamar o trono da França. Cecily já não tinha esse vínculo. Homens como aqueles cavaleiros, talvez até mesmo algum deles, podiam ter tirado a vida de seu pai. E quando este faleceu, logo em seguida sua mãe também se foi…

Ela suspirou, Isabella a censurou, e continuou a prestar a atenção no campo. O guerreiro francês louro, que usava uma capa azul e dourada e ainda estava com o elmo cobrindo seu rosto, parecia ameaçador, talvez nem fosse humano. Esperava que ele não machucasse Gilbert. Ora, claro que não, não estavam numa guerra, mas sim num torneio.

Teoricamente, não devia haver mortes numa competição, pelo menos não com muita frequência.

O juiz deu o sinal para que a disputa começasse. Cecily rezou pela segurança de Gilbert e aguardou para mais um prolongado torneio de lança e espada.

Os cavalos galoparam, levantando tufos de grama. De um lado, os animais paramentados com capas azuis e douradas; do outro, verdes e brancas. Gilbert parecia meio desequilibrado sobre o cavalo, enquanto o francês cavalgava com uma postura tão sólida e impenetrável quanto as muralhas de Windsor. Ela segurou a respiração como se isso fosse ajudar. Eles estavam indo rápido demais. E se o francês de fato…

As lanças se tocaram tilintando no ar. Alguma coisa voou pelo campo. Uma ponta de lança? Uma luva? O cavalo de Gilbert empinou e ele foi jogado de costas no chão. A capa verde e branca estendida no campo se assemelhava ao capim de primavera.

Cecily levantou num salto. Será que ele tinha se machucado? Ou teria acontecido alguma coisa pior?

Outra perda não, por favor…

O francês recuou com o cavalo para que o animal não pisoteasse o garoto por acidente. O escudeiro de Gilbert disparou na direção de seu amo; o cavaleiro se sentou, e sem ajuda, removeu seu elmo. Sem a proteção da armadura, envolto pela sombra do oponente altivo ainda sobre o cavalo, ele parecia jovem, magro e destreinado.

Mas, graças a Deus, ileso.

– Temo que seu lenço não tenha adiantado – disse Isabella, arqueando as sobrancelhas.

– Não foi uma disputa muito justa. Como isso estava evidente, o francês devia ter sido mais cavalheiro e poupado a vergonha a Gilbert.

– Acho que ele não liga muito para cortesias. Mas o amigo…

Enquanto Isabella falava, o cavaleiro francês, o guerreiro que Cecily gostaria que fosse decapitado, virou o cavalo e saiu do campo.

Dessa vez ninguém aplaudiu.

Castelo de Westminster – Naquela mesma noite

 

Cecily estava no palanque do cavernoso Salão Nobre do Castelo de Westminster e dali observava enquanto os criados circulavam com tochas entre os presentes. A luz tremeluzente sombreava o rosto das pessoas, mas, mesmo assim, ela estudou um por um, avaliando qual deles faria parte de seu futuro.

Será que o escolhido para seu marido seria o conde alto de West Country? Ou talvez o atarracado Barão de Sussex, que recentemente havia perdido a esposa?

Notar a presença dos reféns franceses misturados aos outros a deixava de mau humor. Ela não estava nem um pouco disposta a trocar delicadezas com os assassinos de seu pai. Pelo menos o cavaleiro que havia vencido Gilbert naquela tarde não havia nem ousado aparecer.

Determinado a impressionar os reis convidados com toda pompa e circunstância de sua corte, o rei Eduardo desafiava a escuridão da noite. A mesa do alto do palanque estava repleta de candelabros de bronze, que ostentavam dezenas de velas.

Ainda assim, as memórias de Cecily pareciam surgir das sombras. Quando seu pai ainda era vivo, ele costumava se sentar à mesa do rei. E quando sua mãe participava dos eventos, as duas costumavam comentar baixinho sobre os vestidos das damas. Sua mãe certamente teria gostado do vestido escarlate que lady Jane vestia…

– Cecily? Você está me ouvindo?

– Desculpe-me. O que foi? – indagou ela, inclinando-se para ouvir o sussurro de Isabella.

– Ouça, meu pai tem boas notícias da Escócia – disse Isabella, franzindo o cenho. – Ele está generoso e menos tranquilo que o normal – Isabella sussurrou. – É capaz de ele prometer sua mão para o primeiro lorde disponível antes de a noite terminar.

Cecily empertigou-se e olhou ao redor.

– Ele falou com alguém em particular?

– Não que eu saiba. – Isabelle balançou a cabeça.

Cecily não sabia com quem se casaria, mas sabia que seria um inglês leal e forte. O rei escolheria alguém em quem confiasse da mesma forma como havia designado a seu pai o Castelo de Losford, o Guardião do Canal, a fortificação mais importante de toda a Inglaterra por manter os inimigos longe da costa.

O futuro noivo teria de ser alguém que colocasse as responsabilidades acima de tudo. Da mesma forma que ela. Ela havia crescido sabendo que essa sempre seria sua obrigação por ser filha única do conde de Losford e única herdeira das terras e do título. Ela sempre soube que se casaria com alguém designado pelos pais e pelo rei.

– Você está pensando nele? – A pergunta de Isabella trouxe Cecily de volta ao presente.

– Penso no meu pai todos os dias. – Não que ela o visse todos os dias enquanto ele ainda vivia. Como todos os homens, ele passava a maior parte do tempo na guerra contra a França.

– Eu estava me referindo a quem poderia ser seu marido.

Cecily achou o comentário estranho vindo de alguém que estava solteira há tanto tempo. Sem falar que seu pai também não tinha se apressado em lhe arrumar um marido. Apesar de já ter passado da idade de casar, o mundo dela se restringia aos pais, ao castelo da família e à corte.

Ela ainda não está pronta, sua mãe sussurrara ao ouvido do pai.

Cecily sentiu como se o chão tivesse lhe sumido dos pés quando perdera os pais. Ela ainda não tinha certeza se, ao se casar, seu mundo voltaria de novo a ser o que era.

– Aceitarei quem o rei escolher. – Era essa sua obrigação.

– Bem, meu pai exige que um homem tenha bons resultados nos torneios – disse Isabella. – Hoje, ele ficou mais impressionado com os reféns do que com quaisquer dos homens dele.

Cecily respirou aliviada; pelo menos os reféns não eram elegíveis a seu marido.

– O cavaleiro francês moreno se portou de acordo com o código de conduta, já o louro foi uma desgraça – admitiu ela de mau humor.

– Talvez, mas meu pai disse que seria bom contar com um guerreiro como ele numa batalha.

Aquela era uma constatação surpreendente para um rei que tinha como modelo para si mesmo e para sua corte os ideias do rei Arthur e os cavaleiros da Távola Redonda.

– Olhe – chamou Isabella. – Ali está ele.

– Quem? – Aliviada pela mudança de assunto, Cecily seguiu o olhar de Isabella.

– Ali… perto do fogo. O cavaleiro francês moreno.

O cavaleiro em questão estava ao lado do amigo louro diante de uma das lareiras, pouco adiante de onde elas estavam. Os dois pareciam bem à vontade, como se estivessem em casa em vez do salão real.

– É hora de conhecê-lo – disse a princesa. – Vá até lá e traga-o até aqui. Quero parabenizá-lo pela vitória de hoje.

– Eu me recuso a falar com aquele homem – Cecily respondeu, pensando no cavaleiro louro.

Como ele se chamava mesmo? Na confusão e no barulho do torneio nem ela, nem Isabella, tinham ouvido o nome dos cavaleiros.

– Principalmente depois da maneira como ele tratou Gilbert…

Isabella contraiu os lábios, Cecily franziu o cenho e as duas começaram a rir.

– Pobre Gilbert.

Nos momentos seguintes à disputa, Gilbert não parecia estar machucado. Mas havia chegado ao salão naquela noite com algumas marcas roxas e saído mais cedo, mancando. Cecily ficou aliviada de não precisar fingir-se interessada na terrível performance dele.

– Peça a outra dama, ou então, a um pajem – disse ela, parando de rir, sabendo que seria um insulto bem apropriado para o francês.

Isabella balançou a cabeça.

– Não me importa como você vai fazer, a escolha é sua, mas traga o amigo dele aqui.

Cecily suspirou, desceu do palanque e atravessou o salão. Quanto mais avançava, maior era seu ressentimento. Ela morava na Inglaterra, obedecia a um rei inglês e frequentava a corte inglesa, mas ainda assim, a música que dominava o salão era francesa. Seguia passos franceses quando dançava. Até mesmo falava algumas palavras em francês. Não era de se estranhar que os reféns se sentissem tão à vontade. Mesmo estando do outro lado do Canal, eles podiam se dizer em casa.

Isabella tinha razão. Os dois países dividiam a cultura, a língua e até mesmo, em alguns casos, o sangue. Mesmo assim, não era o suficiente para impedir que se matassem uns aos outros.

Quando ela se aproximou dos dois franceses, o moreno se afastou. Ela parou e pensou em escapar também, mas já havia ido longe demais. O olhar dela cruzou com o do cavaleiro louro.

Agora não tinha mais como dar as costas e sair andando.

Ele se recostou na parede parecendo à vontade, mas, conforme ela se aproximava, sua postura foi mudando, e apesar da música e do ambiente alegre, ele se retesou como se estivesse pronto para uma luta.

Cecily parou, esperando que ele a cumprimentasse fazendo uma vênia, mas o rapaz se limitou a baixar o olhar em silêncio.

– Segundo as regras da boa educação, um cavaleiro deve cumprimentar uma dama – disse ela por entre os dentes.

O cavaleiro deu de ombros. Será que nada afetaria a postura daquele bárbaro silencioso?

– Faço parte da comitiva real.

– Isso quer dizer que devo me curvar não só para a realeza, mas também para aqueles que os servem?

– Não sou uma criada – ela retrucou à sugestão humilhante. Como ele podia ter confundido uma dama usando um vestido de veludo lilás com uma criada? Aquilo só podia ser provocação. E o pior é que ele tinha alcançado o objetivo. Ela fechou as mãos em punhos e se forçou a dar de ombros também. – Você acaba de provar que a cavalaria francesa é superestimada.

O cavaleiro empertigou-se como se as palavras dela o tivessem atingido.

– Marc de Marcel, às suas ordens – disse ele, inclinando levemente a cabeça, um gesto perfeito de zombaria.

– Ser um cavaleiro implica muito mais do que boas maneiras. Um cavaleiro devia permitir a um oponente mais fraco manter sua honra num torneio.

Ao observar o vestido dela, Marc fez uma expressão impossível de ser decifrada.

– O amuleto que ele carregava era seu.

Pelo tom de voz dele ficou implícito que ele insinuava que ela e Gilbert… Isso não significa o que você está pensando.

– Eu confirmaria mesmo que não fosse meu.

Cecily estava com dificuldades até para respirar com aquele olhar tão penetrante a observando. O brilho de ódio do olhar dele era igual ao dela. Ou talvez significasse mais do que ódio. Talvez estivesse mais relacionado a uma fome…

Marc forçou um sorriso.

– Você teria agido da mesma forma se eu tivesse caído do cavalo.

Cecily corou, admitindo que ele tinha razão, e envergonhada por ser tão rude quanto ele. Uma condessa devia ser superior a esse tipo de fraqueza. Ela reassumiu a postura de uma nobre e mostrou um interesse educado ao perguntar:

– Faz tempo que está aqui?

Marc reassumiu a expressão fechada.

– Faz semanas, mas parecem anos. Seu rei permitiu que conde d’Oise fosse enviado para casa, mas exigiu que um substituto ficasse em seu lugar. C’est moi. Agora que já respondi, você pode se retirar.

– A filha do rei gostaria de conhecê-lo. – Era mentira, mas uma boa razão para ela estar ali. – Ela se interessa muito pelos prisioneiros de seu pai. – Apenas pelos mais bonitos, pensou Cecily, mas não disse nada, virando-se e rezando para que ele a seguisse.

Ele a acompanhou.

Isabella reprimiu o sorriso ao vê-los se aproximar. Cecily tinha receio de ser alvo de comentários jocosos por ter trazido o homem que havia jurado desprezar.

– Cavaleiro Marc de Marcel, milady. Ele chegou recentemente à corte.

Marc se curvou numa vênia bem mais respeitosa do que tinha usado com Cecily.

– Um refém pode ter a honra de ser apresentado a seu captor, milady? – disse ele com certa ironia, como se a pergunta tivesse dois significados.

Bem, Isabella iria gostar, tanto que já estava prestes a rir. Tudo pelo espetáculo, claro. Uma princesa e uma condessa tinham de ser perfeitas. Mas as conversas triviais e a vontade de se divertir de Isabella tinham mantido Cecily fora do desespero.

Entretanto, não era Isabella que mantinha a atenção de Marc, e sim Cecily.

– Pode sim. Na verdade, é preciso – disse Isabella chamando a atenção de Marc para si. – E seu amigo… – Ela inclinou a cabeça na direção do outro cavaleiro que havia voltado ao salão –… ainda não se apresentou. E acredito que ele esteja há mais tempo na Inglaterra do que você.

Como se a tivesse ouvido falar, o cavaleiro moreno se aproximou do grupo. Parecia que estava esperando ser requisitado. A bem da verdade, os dois pareciam ter planejado tudo aquilo. Tanto que, ao chegar, Enguerrand não pediu permissão e nem esperou ser apresentado; foi logo dizendo:

– Enguerrand, lorde de Coucy.

E foi tudo o que ele disse. Nenhuma outra explicação foi dada, como se o nome dele bastasse. Houve uma época em que a família tivera terras ali.

Isabella inclinou a cabeça, cumprimentando-o em silêncio. Não havia necessidade de ela se apresentar. Todos sabiam que ela era a filha mais velha e favorita do rei.

As trombetas dos menestréis começaram a tocar, abrindo o baile. Isabella se levantou e estendeu a mão a Enguerrand, forçando-o a levá-la para dançar. E ele não titubeou.

Cecily olhou em desespero pelo salão, esperando que alguém a resgatasse. Afinal, ela devia dançar a primeira música com alguém que pudesse ser seu marido, e não com um refém. Bem, Marc a poupou do constrangimento e não a convidou. Ela contraiu os lábios e tentou ser gentil:

– Você é do Vale de Oise?

Marc franziu o cenho, como se não tivesse gostado de ouvir o nome de sua terra.

– E lá não se dança?

– Nem sempre. Quando les maudits dão uma pausa na guerra.

– A quem você está se referindo? – Ela perguntou, piscando.

– É assim que chamamos os ingleses.

– Por quê?

Será que eles blasfemavam contra os ingleses a toda hora?

– Porque os ingleses fazem o mesmo em toda frase que dizem.

Cecily procurou não rir. Ele tinha razão, o pai dela costumava praguejar daquele jeito. Era possível até que ele repetisse o comportamento centena de vezes no meio de uma batalha. Assumindo a postura imperial de uma princesa, ela estendeu a mão a ele.

– Mostre-me se você sabe mesmo dançar.

– Isso faz parte do castigo dos reféns?

– Não – retrucou ela. – Isso é um privilégio.

– Então, mademoiselle, preciso saber o nome da minha parceira.

Cecily ficou envergonhada por ter se esquecido do detalhe, mas a vergonha foi logo substituída pela raiva. Ela procurou se conter, contudo, pois, caso contrário, agiria como uma moça comum.

– Lady Cecily, condessa de Losford.

A surpresa no rosto dele valeu o esforço que ela havia feito para ser agradável. Marc olhou para a cabeça descoberta de Cecily e desviou o olhar para trás dela, esperando que o conde aparecesse.

– Sou a dona do título – disse ela, com orgulho e tristeza ao mesmo tempo.

Ela era a única a ostentar a posição porque não havia outro membro de sua família. E o manteria enquanto um marido não fosse escolhido.

Marc meneou a cabeça discretamente e, ao contrário da sua reação inicial, estendeu a mão sem hesitar. Cecily foi invadida por uma onda de surpresa, ou talvez havia sido uma sensação mais profunda e desconhecida, quando colocou a ponta dos dedos sobre a mão dele. Ela achou que fosse tocar a pele macia como a de todo cavaleiro depois do fim da guerra. No entanto, havia calos naquela palma e os nódulos dos dedos estavam raspados. Talvez ele tivesse se machucado durante o torneio, mas ao passarem perto de um tocheiro, ela viu que as mãos dele tinham cicatrizes antigas.

Os dois se uniram aos outros casais na pista de dança. Não muito longe de onde estavam, Enguerrand e Isabella sorriam e cochichavam como se a noite tivesse sido preparada para o divertimento de ambos. Ele não parecia nem um pouco ressentido por ser um refém, enquanto Marc continuava emburrado e em silêncio quando a música começou.

Enguerrand e Marc eram amigos, mas não podiam ser mais diferentes.

A dança fazia com que os casais estivessem sempre em movimento, segurando as mãos no alto, por isso era impossível de se conversar. Mesmo assim, Marc se movimentava da mesma forma como falava, conciso e com precisão, fazendo apenas o necessário.

Cecily chegou a pensar se ele se divertia em algum momento.

Bem, estava claro que ele não estava se divertindo com ela. Assim que a música terminou, ele soltou a mão dela e Cecily suspirou, deixando transparecer o quanto estivera tensa nos últimos minutos.

Marc continuou diante dela, olhando ao redor, procurando uma maneira de se afastar. Enquanto isso, Cecily pensou que aquele inimigo podia, se quisesse, desfrutar do bom vinho do rei, de uma farta refeição e se deleitar com a música dos menestréis, vivo e confortável, enquanto o pai dela jazia no cemitério.

– O que você fez para ter a honra de ser substituído por outro refém? – indagou ela, quebrando o silêncio.

– Honra?

– Você foi derrotado na guerra, matou meu… meus conterrâneos e ainda assim o rei o recebe em sua corte com fartura de comida e bebida. Acho que isso é um castigo generoso para quem perdeu.

– Uma prisão não muda por ostentar tapeçarias na parede.

– Mas você está a salvo e livre para fazer o que quiser.

– E se eu quiser voltar para casa?

Mas o pai dela jamais voltaria.

– É preciso pagar uma pena. Nós os conquistamos!

Cecily deixou as palavras escaparem e notou como Marc mudou de expressão.

– Não! Não fomos conquistados e nunca seremos. Fomos traídos por covardes. Lorde de Coucy e eu não estávamos entre eles. Nós teríamos lutado até que o último maudit morresse.

Dessa vez ele tinha praguejado de verdade.

– Então, você odeia os ingleses – disse Cecily, usando palavras brutas com as quais ele devia se identificar.

– Da mesma forma como você odeia os franceses – Marc respondeu.

– Disso eu duvido. – Cecily estava tão irritada que conseguiu manter a voz firme. – Bem, já que você nos detesta e desdenha da hospitalidade do rei, espero que sua estada aqui seja breve.

Marc fez uma vênia, mas não por respeito, e sim por zombaria.

– Pelo menos nisso estamos de acordo, milady.