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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2001 Lynda Stone. Todos os direitos reservados.

A PROCURA, Nº 70 - Setembro 2013

Título original: The Quest

Publicada originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicado em português em 2004

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-3409-5

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

Um

 

Costa ocidental da Escócia, 1340.

 

Ao desembarcar, Henri Gillet pensou que a sua chegada à beira-mar não apaziguava em nada a amargura da sua primeira derrota. Arrastou as suas longas pernas pela água, que lhe chegava até às coxas, e gritou por cima do ombro:

– Paga a esse homem, Ev.

O escudeiro atirou uma pequena bolsa de moedas ao pescador e avançou pela água gelada até onde o esperava Henri, na orla coberta de rochas.

– Onde estamos, senhor? – perguntou, a tremer de frio.

Embora se esforçasse para que a sua voz soasse tranquila, Henri sabia que certamente o rapaz temia o que os aguardava. E para dizer verdade, a ele acontecia-lhe o mesmo, embora não pelas mesmas razões.

Necessitava de chegar a um lugar seguro para que o rapaz pudesse ter possibilidades de sobreviver. E no momento não estava certo de o conseguir. Colocava com tranquilidade um pé à frente do outro e procurava combater a dor. Depois de tudo, a ferida aberta exactamente abaixo das costelas doía menos que a ferida do coração. Tinha perdido tudo.

Se morresse, teria que dar contas a Deus. E se vivesse, a seu pai. Para ele não havia muitas diferenças. Não porque esperasse dureza em nenhum dos casos, já que ambos o tinham tratado com benevolência até ao momento e voltariam a fazê-lo. E isso seria muito pior que qualquer castigo que pudesse infligir-se. A derrota era, na verdade, um amargor desagradável.

Ele não a tinha causado. Pelo contrário, tinha feito todo o possível para a impedir. E no entanto, sentia-se de algum modo responsável por perder o que lhe tinham confiado. As vidas dos que o tinham seguido quando os chamaram à guerra. Tinham-se afogado todos excepto o jovem Everand.

– Conheço este terreno, não estamos perdidos – tranquilizou o escudeiro. Sentiu uma ponta de culpa por ter arrastado aquele jovem para tão longe do seu lar, em Sarcelles, para lutar contra os ingleses. E tinha estado quase a acabar numa sepultura marinha quando o seu barco se afundou perto da costa de Portsmouth. O rapaz de catorze anos alargava o passo para não ficar para trás e mostrava-se ainda tão desejoso de servir o seu amo como um cãozinho. Henri moveu a cabeça perante o entusiasmo da juventude.

– Deveria descansar, milorde. A vossa ferida preocupa-me – o escudeiro não disse que Henri tinha começado a cambalear e dava mostras de fraqueza. E este pensou que Everand Mercier era a personificação da compaixão e da lealdade. Por isso tinha escolhido o rapaz, o filho mais jovem de um falecido mercador de roupa, para o servir. Sabia que um dia seria um bom cavaleiro, apesar da sua estatura.

– Penso que há uma aldeia não muito longe, costa acima – disse. – Pararemos lá e enviaremos recado à minha família.

– Restam-nos poucas moedas para pagar a alguém que faça isso, milorde – informou Everand. – Não teria que cruzar quase toda a Escócia?

Henri deteve-se e tirou a corrente de prata que levava em torno do pescoço. Tirou também o anel que levava no dedo e entregou ambas as jóias ao escudeiro.

– Se a morte se apoderar de mim, usa a corrente para pagar a alguém que nos leve de carro até ao castelo Baincroft, em Midlothian. O barão de lá, lorde Robert MacBain, avisará o meu pai e ocupar-se-á do teu futuro.

Everand não discutiu nem se incomodou em argumentar que era impossível que morresse; sabia que podia acontecer. Limitou-se a assentir com a cabeça.

– E o anel, milorde? – perguntou.

Henri sorriu e colocou uma mão no ombro do rapaz.

– O anel é para ti. Dirás a lorde Robert e a meu pai que és meu filho.

Everand corou e riu com incredulidade.

– Eu, milorde? Olhe bem para mim! Sou tão ruivo como vós sois moreno. Além disso, jamais acreditariam que tivésseis tido alguém assim, mesmo que fôsseis mais velho. E não o sois – acrescentou com secura. – Duvido que sejais... suficientemente velho.

– Suficientemente velho? – riu Henri, que sentia a cabeça leve como ar. Ev conseguia arrancar-lhe sempre uma gargalhada, mesmo na hora mais inoportuna.

Embora soubesse que a noite ainda estava longe, a paisagem parecia escurecer e tremer contra o horizonte. Henri deixou-se cair de joelhos e sentou-se nos calcanhares.

– Di-lo de qualquer forma. Lorde MacBain aceitará. És um irmão para mim, embora não partilhemos vínculos de sangue.

– Mas, senhor, não posso enganar a vossa família e fazer-lhes pensar que sou vosso bastardo – argumentou Ev.

– Claro que não. Jamais penses que eu te pediria que renegasses a tua legitimidade, Ev, nem o bom homem que te criou. Mas é minha intenção adoptar-te aqui e agora, se tu não tiveres nada que objectar. Embora nunca possas ser herdeiro do meu título, herdarás uma parte da minha riqueza pessoal. Tu merece-la, por tudo o que fizeste por mim.

– Nesse caso, obrigado, senhor. Sois muito generoso.

Henri respirou com força.

– Temo que tenhas razão numa coisa, Ev. Acho que se impõe um descanso – tocou nas costas e sentiu a humidade pegajosa. Pensou que, depois de dias assim, devia estar já quase sem sangue.

Deu aquilo que temia que pudesse ser a sua última ordem:

– Vai procurar na aldeia e consegue um carro, Ev. Eu vou esperar aqui.

Tombou sobre o lado bom e observou Everand a correr costa cima em busca de ajuda. Quando o rapaz se converteu num ponto distante, Henri cochichou uma prece, fechou os olhos e deu as boas-vindas ao sono. Pelo tempo que durasse.

 

 

– Desaparece daqui e deixa-me em paz!

Apesar da curiosidade que sentia pelo rapaz que levava meia hora a atormentá-la, Iana não estava disposta a ter com ele uma missão de misericórdia. Estivera todo o dia a preparar-se para deixar Whitethistle e não tinha tempo para aquilo.

Colocou a faixa onde dormia a menina numa posição mais cómoda nas costas, baixou o balde até ao fundo do poço e esperou que enchesse. Se lavasse a roupa nesse momento, secaria antes que caísse a noite e poderia sair da aldeia antes de amanhecer.

A compaixão pelo rapaz fê-la falar enquanto tirava o balde de água:

– Acho que há uma curandeira a uma légua a norte daqui. Diz-lhe que vá contigo.

– Tendes que vir vós – insistiu o rapaz, mudando com impaciência o peso de um pé para o outro. – Até agora, fostes a única pessoa que vi que entende o que digo. O vosso marido também fala a minha língua? Eu explicar-lhe-ei o que se passa para que a deixe vir. Ficará contente com a nossa recompensa, não?

– Eu não tenho marido – disse ela. – Nem tenho tempo a perder com um vagabundo ferido. E agora sai daqui – levantou o balde e voltou-se para se ir embora.

– Não somos vagabundos, juro. Sir Henri morrerá se não lhe levo ajuda. Por favor.

Iana sabia que era certo que ali ninguém falava francês. E embora o rapaz conseguisse fazer-se entender, ninguém confiaria nele. E que mulher no seu juízo perfeito o seguiria por uma praia deserta onde podia ter amigos maiores à espera para a violarem?

No entanto, podia ver por si mesma que o rapaz não era um mendigo nem parecia um bandido. A sua roupa, apesar de estar enrugada e rota, tinha uma fineza desconhecida por aquelas bandas.

O seu discurso indicava uma certa educação e as suas acções eram gentis. Não duvidava de que era o que afirmava ser, o escudeiro de um cavaleiro.

Deixou o balde de água no chão e olhou para ele com os braços na cintura. Preocupava-a pensar que podia salvar alguém com uns momentos do seu tempo e um punhado de ervas e não o fazer.

– A que distância deixaste esse teu amo?

– Próximo daqui – assegurou-lhe o rapaz.

Iana sabia que mentia. Via-o nos seus olhos. Olhou-o com dureza.

– Está bem – corrigiu ele, envergonhado. – A duas horas de caminho.

– Duas horas? – Iana levantou as mãos para o céu. – Porquê eu? Que te faz pensar que eu saiba algo de curas?

O escudeiro colocou as mãos nas ancas e adoptou um ar de superioridade.

– Muitas damas aprendem essa arte, não? De que outro modo iam cuidar das pessoas a seu cargo? Por favor, senhora. Não lho pediria se não estivesse tão mal. Pagarei bem.

A mulher olhou para ele com astúcia.

– Tu chamas-me dama. Se achas que sou uma dama, por que pensas que necessito da tua moeda?

O rapaz olhou-a de cima a baixo com ar especulador.

– O vosso comportamento e a vossa forma de falar traem a vossa origem, embora o vosso vestido seja pouco melhor do que o de uma camponesa – observou.

Olhou para as casas de ramos e barro que havia perto dali.

– E viveis aqui. Eu diria que a fortuna vos foi adversa. Embora não por culpa vossa, estou certo – apressou-se a acrescentar.

As suas últimas palavras deixavam transparecer as suas dúvidas a esse respeito, e evitou olhar ou mencionar a menina adormecida. Ela tinha-lhe dito que não tinha marido. Certamente pensava que se tinha desonrado com um homem e a sua família a tinha deixado entregue à sua sorte por causa dele. E Iana admitiu que, embora se enganasse no motivo, não andava muito distante das consequências.

Sir Henri e eu recompensamos as boas acções, asseguro-lhe.

Se conseguisse algumas moedas, seria mais fácil sair daquela maldita aldeia onde a tinha deixado Newell devido à sua rebeldia. E já fazia dias que pensava que qualquer lugar excepto o inferno seria preferível a Whitethistle. Embora não tivesse para onde ir nem como chegar lá, o desespero empurrava-a a ir-se embora já.

Sabia que, se não o fizesse, teria que renunciar à pequena Tam. Newell jamais lhe permitiria ficar com ela e nenhum dos aldeões a ajudaria. Talvez Deus tivesse enviado aquele rapaz para lhe dar os meios para fugir.

– Quanto me darás? – perguntou, tentando não parecer avarenta.

O rapaz tirou uma corrente de prata fina do interior do colete e mostrou-lha.

– Isto – disse de má vontade. – Era para financiar a nossa viagem ao Este, mas suponho que não nos servirá de nada se sir Henri morrer da sua ferida. Cure-o e será vossa.

Iana abriu muito os olhos ao contemplar aquele tesouro. Podia separar facilmente os elos e manter a Tam e a si mesma durante meses. Tomou uma decisão rápida.

– Antes temos que voltar à minha cabana para ir buscar as minhas coisas. Disseste que a sua ferida é um corte?

O rapaz olhou-a, aliviado.

– Sim. Embora ele diga que não é muito profunda, não deixa de sangrar há quase uma semana. A perda de sangue e a febre debilitaram-no, mas não tem o fedor de quem está a apodrecer – fez uma careta. – Ainda.

Iana anuiu com a cabeça e caminhou até à sua cabana. Por sorte, nenhum dos aldeões andava por ali. Os homens estavam ocupados com a pesca e as mulheres, a preparar o comer dessa hora do dia. Até os mais jovens tinham alguma tarefa. E ela preferia que ninguém a visse ir-se embora com aquele desconhecido.

Não demoraria muito a reunir os seus artigos de costura e algumas coisas que não podia deixar para trás. Tam acordou quando entravam, por isso, tirou-a do atilho e deu-lhe a comer o último pedaço de pão e o último leite. Depositou-a num alguidar de barro e o rapaz apressou-se a sair da cabana e esperar lá fora.

– Isso, isso, tesouro – cochichou. – Esta é a minha Thomasina. É uma rapariga estupenda, não é? – Lavou-a com um pano e a água que acabava de tirar do poço e pôs-lhe um vestido de linho limpo.

Os olhos castanhos da menina olhavam-na com tal confiança que Iana sentiu que os seus se enchiam de lágrimas. Passou a mão pelos caracóis escuros de Tam.

– Se de mim dependesse, ninguém nos separava – assegurou-lhe. – Já perdeste demasiado nestes últimos meses, e eu também. Agora vamos lá, querida – colocou a menina magra no tecido que a segurava antes e pendurou-a às costas. A sua carga tinha-se convertido num autêntico consolo para ela nas duas últimas semanas, algo de calor no seu frio isolamento.

A sua mãe tinha morrido de tosse convulsa, não sem antes lhe suplicar que levasse a menina e a ajudasse a sobreviver. A pequena Tam estava também à beira da morte, mas de fome, não da doença que tinha levado a sua mãe.

A única coisa que Iana sabia delas era o nome de baptismo da menina e que a mãe se tinha visto obrigada a deixar a aldeia uns meses antes. Encontrou as duas no bosque quando recolhia ervas. Nenhum dos aldeões falava da mãe e evitavam a menina como se tivesse lepra.

A menina não causava mais incómodo que a leveza do seu peso nas costas. Comia quando lhe dava algo, aliviava-se quando Iana a ajudava e não chorava nunca. A julgar pelos seus dentes, devia ter uns dois anos, embora pelo seu tamanho aparentasse ter metade, e não andava. A primeira noite, quando Iana a tomou nos seus braços, a menina levantou uma mão, tocou-lhe na face e lançou um gemido, como uma gatinha. Sim, Tam era agora sua.

Levantou os olhos e viu o rapaz entrar de novo na cabana.

– Farinha de aveia – murmurou. Tomou o saco que continha a sua provisão. – E uísque – passou a garrafa ao escudeiro. O álcool serviria tão bem como qualquer medicamento que pudesse pedir aos vizinhos.

Ali ninguém apreciava muito as ervas que Iana usava para tratar feridas e doenças. Confiavam mais em partes de animais e nos velhos remédios druidas. E no bosque abundavam coisas melhores. Iana meteu no saco o que achava que ia precisar. A velha curandeira de Ochney tinha sido uma boa professora, embora Iana tivesse gostado de poder permanecer ali depois da infância para ter aprendido mais com dela.

Colocou a pouca roupa que possuía dentro do seu xaile e atou as pontas. Depois de coser a ferida daquele cavaleiro, iria imediatamente para Ayr, o maior porto mais próximo. Os elos de prata da corrente serviriam para pagar uma passagem no primeiro barco que saísse da Escócia. Talvez para a ilha de Eire. Tinha ouvido dizer que era um lugar bonito de habitantes amigáveis.

Era-lhe igual qual fosse o destino, desde que fosse longe dali. Se o seu irmão descobrisse que o seu exílio não lhe tinha ensinado a lição e feito mudar de ideia sobre casar com Douglas Sturrock, Iana não duvidava de que recorreria a medidas mais drásticas. Tinha-a avisado que não desejava ter que ganhar a sua aquiescência à base de pancada. Mal sabia ele o pouco efeito que isso teria. Como se, por lhe bater uma vez, pudesse fazê-la aceitar uma vida inteira de pancadaria! Newell tinha menos cérebro que um sapo. As coisas que a sua esposa lhe tinha contado dele sugeriam que se tinha tornado quase tão mesquinho como tinha sido o seu próprio marido. A Iana custava-lhe a acreditar, mas as suas acções davam força às palavras de Dorothea.

Casar-se com Sturrock era tão prometedor como o seu primeiro casamento. Iana talvez pudesse sobreviver, se Newell forçasse o casamento, mas a pequena Tam não conseguiria. A órfã indefesa seria abandonada e morreria sozinha e agora Iana tinha um modo de evitar isso, uma possibilidade de ambas poderem salvar-se.

Essa ideia fez-lhe apertar o passo até que o rapaz teve que correr para não ficar para trás.

– E dizes que houve uma batalha em Portsmouth? – perguntou ela com curiosidade. – Os franceses já invadiram a Inglaterra? Onde está essa cidade?

– Na costa sul, senhora. Tínhamos deitado fogo ao lugar e voltávamos para casa quando o barco começou a meter água. Fizemos sinais ao mais próximo dos nossos barcos, mas não respondeu. O barco voltou-se de lado e muitos caíram borda fora. Depressa se afundou como uma rocha.

Fez uma pausa para respirar fundo.

Sir Henri foi atingido por um mastro partido – continuou. – Caiu sobre ele quando soltava os barris atados na coberta. Pensávamos que todos os usariam para flutuar, embora não víssemos mais ninguém a fazê-lo. Pensamos que morreram os trinta homens, que só nos salvámos nós.

Iana moveu a cabeça e estalou a língua com simpatia. Não percebia nada de política, mas parecia-lhe uma pena que morresse tanta gente por causa nenhuma.

A Escócia sempre tinha estado do lado dos franceses, claro. O rei David tinha procurado asilo em França quando Bailliol, amigo do rei inglês, usurpou a coroa escocesa.

Ali, no território ocidental, pouco importava quem governava. A vida continuava como sempre. Mas ela ir-se-ia embora dali antes que terminasse o dia e forjaria o seu próprio destino no mundo.

No castelo de Ochney, ninguém sabia onde tinha ido. Newell chegaria dentro de três dias para lhe perguntar se estava disposta a render-se no que se referia ao casamento.

A ideia de que descobriria o seu misterioso desaparecimento fê-la sorrir de satisfação.

Já caminhava há algum tempo quando Everand a ultrapassou a correr.

– Ali! Ali está! Venha depressa, senhora! Rápido!

Iana observou-o a ajoelhar-se ao lado do seu amo e colocar com ternura a cabeça do homem nos seus joelhos. Aproximou-se deles e observou o ferido.

Não era um homem de meia-idade, como tinha imaginado. Calculou que tivesse uns trinta anos, talvez mais, mas não muito. Era um homem grande, moreno e atraente. A perda de sangue explicava a palidez doentia da sua pele debaixo da barba curta e espessa. Um lado da sua cabeleira de caracóis morenos estava cheia de areia. Parecia inconsciente, ou talvez já tivesse morrido.

– Afasta-te – disse ao escudeiro, ao ajoelhar-se. Desatou o tecido das costas e deitou a menina na areia a seu lado. – Cuida da menina – acrescentou.

Afastou a roupa empapada em sangue e começou a tirar o tecido que cobria o tronco do homem.

– Deus tenha misericórdia! – murmurou ao ver a ferida. Voltou a falar com o rapaz: – Traz lenha e faz uma fogueira. Parece que estaremos aqui um bom bocado – embora soubesse que seria mais inteligente ir-se embora, não podia abandonar aquele cavaleiro nem descurar os seus cuidados.

O ferido abriu os olhos, mas estava claro que não via bem, provavelmente pela febre.

– Levai o rapaz a Baincroft. Tereis o que quereis – murmurou no idioma dela.

– E deixá-lo aqui assim? – perguntou ela com secura. – Não acredito que o vosso escudeiro permitisse.

O ferido pestanejou com força e levantou os lábios numa careta de dor, ou talvez num sorriso.

– Não, suponho que não – sussurrou. Tinha pouco sotaque, mas Iana não tinha dúvidas de que era francês. – Obrigado pela vossa... ajuda – fechou os olhos.

Iana riu sem humor.

– Talvez devêsseis guardar a vossa gratidão, senhor. Estou a ponto de vos causar mais dor do que haveis já suportado.

Quando o rapaz voltou com a lenha, Iana fez fogo com a pederneira e a corda e depois tirou uma tigela de metal dos seus pertences e estendeu-a ao escudeiro.

– Enche-a com água do mar.

Então sentou-se à espera, com a silenciosa Tam abraçada às suas costas.

 

 

Henri lutava para manter os olhos fixos no rosto da mulher que trabalhava com ele e que lhe tinha já tirado a túnica e lavado o corpo com a água do mar que lhe tinha levado Ev.

O ardor da limpeza preocupava-o pouco mais que a dor constante que suportava há dias. Ela olhou-o na cara e Henri conseguiu sorrir, sabendo que assim o acharia corajoso e estóico. Alegrava-se que uma mulher tão bela pensasse isso dele, quando a verdade era que se encontrava já meio morto e habituado à agonia do moribundo. Mas partiria sem queixas nem lamentos.

Ela levantou um recipiente pequeno e deitou um líquido sobre a ferida. O ardor intenso que lhe causou arrancou-lhe um gemido.

– Sentiu isto, eh? – murmurou ela. – Pois ainda será pior.

Henri apertou os dentes para conter as blasfémias que tinham estado a ponto de lhe sair da boca. Não gostava nada das palavras da mulher.

Ela aproximou a garrafa com o mesmo líquido dos seus lábios e ordenou-lhe que bebesse. Fê-lo uma vez e soube de imediato que se tratava da famosa aguardente dos escoceses. Queimava na garganta quase tanto como na ferida, mas tinha-a provado antes e sabia que o faria ficar tonto, que lhe causaria uma bebedeira da qual talvez não acordasse nunca.

– Demorará uns momentos a afectar os vossos sentidos – disse ela. Deixou a garrafa ao lado e tirou uma agulha das suas coisas. Passou um fio pelo buraco.

– Meu Deus! – murmurou ele. – Pensais coser-me com uma agulha e cânhamo?

– Sim, e alegre-se – disse ela, – embora não ainda – acrescentou.

A languidez causada pelo álcool começava a envolvê-lo no seu quente invólucro. O sol já se punha no horizonte. Via os últimos raios a bailar sobre as ondas. Perguntou-se se voltaria a vê-lo nascer, mas não importava.

– Fazei o que desejardes, senhora.

Os seus olhos fecharam-se sozinhos, embora tivesse a vaga esperança de morrer a olhar para os belos traços daquela mulher. Abriu-os com esforço para ver se tinha imaginado a sua beleza. Era real.

Era estranho encontrar alguém assim naquelas terras. Embora nos seus tempos tivesse visto uma boa parte da Escócia, nunca tinha chegado tão a oeste. Por alguma razão, pensava que só havia donzelas altas e louras, de cabelo sem brilho e extremidades avultadas e fortes. Raça viking combinada com o fero espírito guerreiro dos antigos.

Mas essa mulher parecia quase delicada, de movimentos tão graciosos como os de um ruminante ágil. A sua pele parecia leite fresco a reflectir a luz do fogo. Cada vez que os seus olhos se encontravam, brilhavam faíscas nas suas íris. Como teria gostado de a ver nua! Imaginava o seu cabelo suave, sedoso e comprido até à cintura, embora o levasse tão bem tapado que nem sequer podia adivinhar a sua cor. Escuro, certamente, como as suas sobrancelhas.

Voltou a cabeça e viu Ev sentado com as pernas cruzadas ao lado do fogo. No seu colo estava uma criatura pequenina, magra, etérea, que o olhava com curiosidade com olhos do tamanho de nozes. Uma menina? De onde tinha saído?

Parecia irreal, com olhos de velha, boca franzida e um corpo minúsculo. Ao vê-la, dava vontade de a abraçar e protegê-la. Everand pareceu ler-lhe o pensamento e apertou-a contra si. O acto do rapaz reconfortou Henri como nenhuma outra coisa teria podido fazê-lo nesse momento. Pensou uma vez mais que um dia seria um bom cavaleiro.

Olhou de novo para a mulher e perguntou-se se as duas seriam produto da sua imaginação. Pensou que a febre lhe turvava o cérebro, produzindo-lhe visões de esperança e desespero. A esperança parecia-lhe mais real, mais sã, e decidiu prender-se a ela.

Deixou cair as pálpebras uma vez mais, tentando reter aquela imagem enquanto a mente funcionava. Não lhe parecia má ideia entrar no esquecimento com aquela visão na cabeça.

De repente, levantou um braço e lançou um grito.

– Meu Deus!

A mulher afastou-se com rapidez do braço levantado, com a agulha na mão.

– Tendes que estar quieto – disse com firmeza.

Henri acompanhou o fio tenso com os olhos e viu que estava unido à sua pele. Se não estava a morrer já, ela certamente o mataria no acto.

– Eu seguro-o – ouviu dizer Everand com voz profunda, como se fosse um homem adulto e forte como um carvalho.

Esteve a ponto de se deixar rir ao pensar no pequeno Ev a tentar mantê-lo imóvel. Levantou a garrafa e bebeu o líquido que prometia alívio para aquela tortura. Já estava bêbedo, mas não o suficiente.

– Adiante – disse à sua curandeira. – Everand ajudar-me-á. Tem mais força do que faz pensar o seu tamanho.

Sabia que devia permanecer imóvel ou exporia Ev ao ridículo. Pelo menos um dos dois devia conservar certa dignidade à frente da sua encantadora benfeitora e Henri sabia que já tinha perdido a sua.

– Terminei – anunciou ela por fim.

Henri saboreou o sangue que tinha na boca por ter mordido o interior da bochecha. Voltou a cabeça e cuspiu quando Ev lhe soltou os braços.

Viu de novo a menina que tinha imaginado antes. Estava sentada na areia, a chupar um dedo em silêncio e com os seus olhos grandes e tristes fixos nele, a chorar para dentro sem ruído e sem lágrimas. Seria um espírito que esperava a libertação da sua alma?

A mulher aproximou-lhe um pano húmido e frio da cara e moveu-o com gentileza enquanto falava:

– Agora deveis dormir. Voltarei rapidamente com uma cama e levar-vos-ei para algum refúgio. É provável que chova esta noite.

– Viverei? – perguntou ele. Duvidava de que ela pudesse salvá-lo. A febre tinha começado há dois dias e piorava à medida que passavam as horas. Agora fazia-lhe ver crianças fantasmas e pensar que a morte podia ser bem-vinda, depois de tudo.

A mulher não vacilou em mostrar-se sincera.

– Tudo é possível – disse. – Eu fiz tudo o que podia. O resto depende de Deus e de vós.

Henri tomou-lhe a mão e apertou-lhe os dedos com toda a força de que foi capaz.

Ela olhou para ele, indecisa, e a sua expressão tornou-se resignada.

– Não, não o farei. O vosso escudeiro prometeu-me a corrente de prata em troca de cuidar de vós.

– Vivo ou morto. Essa tinha que ser a oferta – disse Henri com voz pastosa. – Tereis que me deixar em casa do meu irmão... de um modo ou de outro – viu que parecia à beira de protestar. – É muita prata para uns quantos pontos e um trago de álcool. Sede justa.

A mulher pensou um momento nas suas palavras e logo anuiu com a cabeça. Meteu os seus instrumentos na bolsa e atou o cordão que a fechava.

– Se viverdes, cuidarei de vós até que possais estar só. Se não recuperardes, transportar-vos-ei até ao lugar aonde desejais ir. O vosso escudeiro mostrar-me-á o caminho, não?

Henri ouviu o som do protesto que Ev emitiu e voltou-se para ele, embora falasse também em benefício da mulher:

– Ide para Este e cruzai o precipício de Clyde. Quando passardes pelas colinas do lado mais ventoso, perguntai pela direcção para Baincroft ou o castelo de Trouville.

– Assim faremos – declarou ela. Soltou-lhe a mão e levantou-se.

– Um momento, senhora – murmurou Henri. – Quero saber o vosso nome.

Ela olhou para ele.

– Iana de Ayr – disse, depois de uma breve vacilação.

– Uma mulher livre? – perguntou ele, embora não pensasse retirar a sua oferta se não o fosse. Só queria saber se a perseguiria algum senhor feudal maluco empenhado em recuperar a sua curadora.

– Livre? – perguntou ela, confusa. Então, nos seus olhos acendeu-se uma luz. – Sim, sou livre como um pássaro. E tenho intenções de continuar a sê-lo toda a minha vida. Levar-vos-ei a esse lugar chamado Baincroft e a vossa família recompensar-me-á dando-me trabalho lá.

Henri, que sabia já que deixava Everand em mãos capazes, rendeu-se ao seu sono febril.