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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2003 Lynda Stone. Todos os direitos reservados.

O ESCOCÊS, Nº 119 - Setembro 2013

Título original: The Scot

Publicada originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicado em português em 2006

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-3414-9

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

Um

 

Edimburgo, 1856

 

James Garrow rodava lentamente o seu segundo jarro de cerveja com o indicador e o polegar enquanto contava, mentalmente, as libras esterlinas que ganhara nas últimas duas semanas. Uma mera fracção do que precisava para ajudar o resto do clã até ao próximo Verão mas, mesmo assim, mais do que o esperado. A cantaria não era um trabalho muito bem pago mas, com tantas construções, era um trabalho estável. O estatuto que obtivera a estudar arquitectura não estava a ser muito útil.

Olhou à sua volta com uma expressão de pesar. A estalagem O Porco e a Trufa, apesar do nome, tinha lençóis limpos, comida decente e cerveja bebível. O quarto que alugara tinha o tamanho do vestiário da sua residência habitual porém, apesar da solidão da cidade, James preferia alugar um quarto pequeno a ter de partilhar o quarto com um desconhecido. Como gostaria de regressar às Terras Altas escocesas! Antes da primeira neve cair, prometera a si mesmo.

Apurou o ouvido para escutar o que diziam na mesa atrás de si. Eastonby. O conde? James ajeitou-se na cadeira para se aproximar uns centímetros e ouviu a conversa com interesse.

– Disseram-me que a rapariga está com ele – sussurrou alguém com uma voz áspera.

– Ainda melhor – repôs o outro homem, com uma voz mais suave e baixa.

– Será um alvoroço – avisou o primeiro. Matar um homem é uma coisa, mas...

– Queres o dinheiro? – foi a pergunta persuasiva. – Então faz o que te digo. Podes fazer o que quiseres com a rapariga – acrescentou com um grunhido.

– Então, apanhamo-lo na estrada de York?

Ouviu-se uma gargalhada grave e rouca e, depois, uma confirmação quase inaudível.

– Assim que ele sair da cidade. E não pode haver sobreviventes, entendido?

A mesma voz indicou, em seguida, o lugar exacto onde o ataque aconteceria e continuou a comentar os detalhes do plano.

Estariam bêbados que nem um cacho para urdir um plano como aquele num lugar público? James olhou para o resto da clientela, ou melhor para a escassa clientela, que estava absorta a beber e demasiado longe para os ouvir. James também não estava perto, contudo tinha um ouvido muito bom, o que maravilhava as pessoas.

Como ainda não lhes vira o rosto, pensou numa forma de o fazer sem se levantar e sem lhes dar a entender que ouvira a conversa. Endireitou as costas devagar; depois deixou-se cair sobre a mesa e, esvaziando o jarro para trás, escorregou até ao chão, como se estivesse bêbado.

Como imaginara, os conspiradores viraram-se bruscamente para ver a que se devia o alvoroço. Amaldiçoando-o e queixando-se ruidosamente de que ele os salpicara com a cerveja, levantaram-se da mesa. James fez um sorriso desajeitado e olhou para eles com os olhos semicerrados até gravar os seus rostos na memória; depois, suspirou ruidosamente e fingiu adormecer. O homem mais baixo deu-lhe um pontapé, com força na perna, contudo James permaneceu imóvel. Depois, saíram os dois da taberna, ainda a protestar por causa dos salpicos de cerveja

Não reconhecera nenhum dos dois.

Quando a porta se fechou atrás deles, James endireitou-se e fingiu levantar-se com esforço. Avançou a cambalear para a porta das traseiras, como se precisasse de fazer as suas necessidades e parou de fingir que estava bêbado assim que saiu. Conseguiu rodear o edifício e alcançar a entrada principal da estalagem precisamente no momento em que os dois homens se afastavam. Escondendo-se na sombra, seguiu-os para depois avisar Eastonby.

Na manhã seguinte, James acordou cedo, vestiu o seu melhor fato e dirigiu-se ao palácio, pensando que o conde ainda não se teria ido embora da cidade e que ele talvez estivesse alojado ali. Um nobre seria convidado a hospedar-se no palácio, pensou.

No entanto, o conde não se hospedara no palácio, mas James soube que ele continuava na cidade. Depois de muitas perguntas e de um longo passeio, James teve de esperar com impaciência que Eastonby o recebesse no hotel Escudo Real.

Teve de questionar-se várias vezes se valeria a pena salvar a vida de um inglês que deixava os seus arrendatários morrerem à fome e não se preocupava com os seus bens. Porém, também havia uma mulher em perigo, disse para si. James iria fazer o possível para impedir aquele assassinato.

– Por aqui – ordenou-lhe um empregado vestido com um uniforme, que o conduziu ao terceiro andar e bateu à porta. Quando lhes deram ordem para entrar, James seguiu o homem até uma elegante sala de estar, onde um cavalheiro distinto de cabelo cinzento estava a assinar alguns papéis, sentado atrás da sua grande secretária.

– O senhor Garrow, milorde – disse o lacaio enquanto recuava até à porta. O conde continuou a fazer o que estava a fazer.

Através da porta que comunicava com outra divisão da suíte, James viu uma rapariga ruiva sentada numa cadeira a ler um livro.

Ao princípio, pareceu-lhe uma menina já que a via de perfil. Ela estava sentada de lado, com as costas apoiadas num braço da cadeira e as pernas em cima do outro, de frente para ele. A única coisa que ele conseguia ver era a cabeça dela, inclinada, com a sua bonita cabeleira de caracóis a cair sobre o livro aberto que descansava nos seus joelhos. Os tornozelos esbeltos e os pés pequenos com as meias calçadas balançavam distraidamente. A jovem mexia os dedos dos pés.

Aquela devia ser a jovem que os homens pensavam matar, depois de lhe fazer coisas piores. Viu que ela levantava o olhar do livro e ele sorriu-lhe. A jovem franziu a testa, levantou-se imediatamente, aproximou-se da porta e fechou-a com força. Não era uma menina, pensou James, mas uma mulher. E bonita, de uns vinte e poucos anos.

O homem atrás da secretária continuava a tratar dos seus assuntos e James decidiu tomar a iniciativa, sem perder mais tempo.

– O senhor é o lorde Eastonby? – perguntou.

O homem virou-se, pousou a pena, inspirou com impaciência e confirmou a sua identidade.

– Sou. Exponha o motivo da sua visita. E você é o senhor Garrow, não é?

– Sim, sou proprietário de Galioch, que liga com a sua propriedade a norte.

– Drevers? – perguntou o conde.

– Sim, mas não foi por isso que vim aqui.

Ontem à noite ouvi, casualmente, alguém a planear uma forma de o matar e vim avisá-lo.

O conde torceu os lábios com ironia.

– E suponho que devo recompensá-lo generosamente por essa informação, não é?

James inspirou fundo e reprimiu a sua irritação.

Havia pessoas desconfiadas por natureza, portanto ele não devia dar importância ao comentário do conde porque ele também era assim.

– Não, não quero recompensas por fazer o que considero correcto. Há um plano para o atacarem em Solly’s Copse, nos subúrbios da cidade e para acabar consigo e com quem quer que o acompanhe – olhou para a porta que a rapariga acabara de fechar. – Falaram de uma mulher.

O conde abriu os olhos, surpreendido. Empurrou a cadeira para trás e levantou-se para se aproximar de James e escrutinar o seu rosto, como se quisesse verificar se ele estava a mentir.

– Tem a certeza?

– Sim. Eram dois homens. Um deles está hospedado na estalagem O Marinho e é tratado por Ensmore. Pareceu-me um homem culto, mas o estalajadeiro desconhecia o seu estatuto. Só consegui seguir este e, por isso, não sei nada do outro, mas é um homem vulgar e de poucas maneiras. E violento – acrescentou James, ao recordar-se do pontapé. – Faça o que achar melhor com o aviso. Tenha um bom dia.

Depois de ter completado o seu dever, James virou-se com intenção de se ir embora. Já perdera duas horas de trabalho e tinha de regressar à obra.

– Espere! – pediu-lhe o conde.

– Contrate escoltas a cavalo e leve armas consigo. Assim não lhe acontecerá nada – tranquilizou-o James. – Boa sorte.

– Pare! Não pode entrar aqui com uma notícia destas e ir-se embora sem mais nem menos – declarou Eastonby.

– Posso e devo, senhor. Nada nem ninguém pode impedir-me. Já disse o que vinha dizer.

De repente, o conde tornou-se amável, forçou um sorriso e apontou para as poltronas perto da lareira.

– Vá lá, reconheço que me precipitei um pouco desdenhando a sua informação desta maneira. Perdoe-me se o ofendi. Deixe-me oferecer-lhe uma bebida, em sinal de gratidão.

– É muito cedo para beber e não gosto de chá – disse James, impaciente por se ir embora.

– Por favor – insistiu o conde. – Fique mais um pouco. Preciso de saber mais algumas coisas.

Resignando-se a estar mais uma hora sem manejar o cinzel e as limas, James acedeu aos desejos do conde e sentou-se numa das elegantes poltronas que o homem indicara. Contou-lhe tudo o que ouvira na taberna e o que descobrira sobre o homem que tramara o plano.

O conde assentiu, inclinou-se para a frente e concedeu a James toda a sua atenção. Pela segunda vez, mas daquela vez com sinceridade, ofereceu-lhe uma recompensa.

– Não quer aceitar nada por tudo o que fez ontem à noite? Correu perigo e é muito possível que tenha salvado a minha vida e a da minha filha. Estou em dívida para consigo, Garrow.

– Não, já lhe disse que não aceitaria nada e estava a falar a sério – James olhou para as suas mãos arranhadas e calejadas quando reparou que o seu anfitrião também estava a olhar para elas.

– Estou a ver que trabalha no duro para ganhar a vida – observou o homem.

– É verdade.

– Se não se importa que lhe pergunte, o que é que faz?

Como perguntara amavelmente e parecia genuinamente interessado, James não teve dificuldades em responder. Era um trabalho honrado.

– Trabalho com pedra.

– E também é proprietário de... Galioch, não é? Precisa de mais dinheiro para manter a sua propriedade?

– Sim – percebeu que o conde estava a tentar inventar uma forma de pagar o que considerava uma dívida sem o ofender. – Não me deve nada – insistiu James – mas há outra questão que eu gostaria de abordar, já que tenho oportunidade. Não seria má ideia se se preocupasse em ajudar os seus arrendatários de Drevers. Devo confessar que Drevers foi um escoamento para os recursos de Galioch.

– Os meus arrendatários? – o conde franziu a testa. – Ajudá-los? O senhor Colin, o meu administrador, é que cuida deles.

James levantou-se.

– Sim, bom, ele apenas aparece para cobrar o dinheiro das rendas e da lã durante a temporada de tosquia, mais nada. A maioria dos homens abandonou o campo, mas há alguns que não querem renunciar aos campos que consideram seus há séculos. Não posso permitir que morram de fome. Se você não se ocupar deles, sou eu quem tem de o fazer. São meus vizinhos, percebe? E muitos deles são meus amigos.

A consternação reflectida no rosto do conde era mais expressiva do que qualquer defesa que tivesse alegado.

– Garanto-lhe que é a primeira notícia que recebo de Drevers, Garrow – disse e abanou a cabeça enquanto indicava a James que voltasse a sentar-se. – Não vou a Drevers desde que a herdei quando tinha vinte anos. O que é que eu devia saber mais? Você parece ser um homem honrado e já me fez um grande favor. Rogo-lhe, faça-me outro sendo franco.

– Bom, a sua residência está num estado lastimável. Para ser sincero, a minha está pior, mas faço o que posso para me certificar de que o meu pessoal tem o que precisa. O seu também, mas apenas tenho conseguido enviar-lhes alguma comida.

Eastonby soltou um suspiro longo e sonoro.

Fez-se silêncio durante alguns minutos; depois o conde olhou-o olhos nos olhos.

– É evidente que você é um homem de honra e compaixão. Imagino que terá um título.

– Sou barão, o décimo quarto da linhagem. O título foi concedido pelo rei Jaime. Devo-lhe o meu nome, como todos os primogénitos da família.

– Garrow é o seu sobrenome? Acho que o meu pai conhecia o seu avô – comentou o conde. – É católico?

James hesitou, depois encolheu os ombros e reconheceu:

– Não de uma forma evidente.

Fez-se um momento de silêncio.

– É casado?

– Não – respondeu James, recusando-se a confessar porquê. Poucas mulheres estariam dispostas a viver em Galioch ou a casar com um homem que passava metade do ano fora, a trabalhar como um camponês para encher os celeiros. – Porquê a pergunta?

O conde sorriu.

– Garrow, acho que podemos fazer um acordo que nos beneficiará aos dois. Está disposto a ouvir?

James assentiu. Achava que conseguiria adivinhar a proposta de Eastonby e parecia-lhe que podia ser uma ideia sensata. Substituir Colin no cargo de administrador dos terrenos dele seria preferível aos seis meses que tinha de passar em Edimburgo todos os anos. Ninguém lamentaria o facto de Frank Colin se ir embora. Quanto ao seu estado civil, talvez o conde quisesse que a propriedade fosse administrada por uma família, visto que no caso de Colin, que era solteiro, as coisas não tinham funcionado bem.

– Do que se trata, senhor?

– Garrow, porei Drevers em seu nome se se casar com a minha filha Susanna – anunciou o conde com orgulho, como se tivesse encontrado a solução para a paz no mundo.

James fez a primeira pergunta que lhe veio à cabeça.

– O que é que a sua filha tem de errado?

 

 

Na divisão ao lado, Susanna Childers ouvia a conversa com o ouvido colado à porta. Quando ouviu as palavras do pai, fechou os olhos com força e apertou os dentes até que lhe doeram. Um momento depois, afastou-se da porta para não ouvir a lista das coisas que o pai considerava os seus defeitos.

Sabia que ela era a única culpada por ele estar em Edimburgo, contudo, o seu pai não tinha o direito de a obrigar a casar com um escocês. O escândalo que acontecera em Londres acabaria por ser esquecido e ela poderia voltar para casa. Ela não se casaria nem seria enterrada viva nas lúgubres montanhas do norte da Escócia, no meio daqueles selvagens. Já ouvira falar da forma como aquela gente vivia!

Passou-lhe pela cabeça entrar pela sala de estar adentro e protestar com tanta veemência que o escocês sairia apavorado. No entanto, pensou melhor antes de pôr a mão na maçaneta. Aquela reacção reforçaria as acusações de impetuosidade e arrogância do seu pai. Seria melhor falar com ele mais tarde e suplicar como uma penitente.

A ideia do casamento arranjado contradizia tudo o que ela defendia. As mulheres deviam opor-se veemente a que os homens governassem as suas vidas e as tratassem como se fossem propriedade deles. Não defendera sempre essa ideia perante aqueles que acediam a escutá-la?

No entanto, expor tais ideias em público fora o que a deixara em apuros. E o jogo de cartas da noite anterior não a ajudara. Nunca devia ter apostado com o seu pai e, ainda menos, a sua liberdade para escolher o seu próprio futuro. De repente, teria de atirar-se aos seus pés e suplicar-lhe que lhe perdoasse a dívida, ou cumprir a aposta e casar-se com o homem com quem o seu pai conversava.

Nem pensar. Suplicaria até não conseguir mais. Se o seu pai voltasse atrás, prometer-lhe-ia que ele poderia escolher-lhe um marido inglês. Juraria aceitar o homem que ele escolhesse com elegância e dignidade, e manter a boca fechada. Qualquer coisa seria melhor do que viver num lugar sujo e comer aveia e cordeiro todos os dias. Ou seja, o que aquela gente esperava das suas mulheres.

A porta abriu-se e ela quase que perdia o equilíbrio e caía para dentro do escritório.

– Susanna – disse o pai, com um pouco de censura na voz. – Faz o favor de te juntar a nós.

O escocês apertava os lábios, contendo um sorriso; os seus olhos verdes brilhavam de júbilo. Susanna sentiu vontade de lhe atirar uma jarra à cabeça. Em vez disso, endireitou-se, levantou o queixo e olhou para ele fixamente.

– Permita-me que lhe apresente a minha filha, lady Susanna Childers. Susanna, este é o barão James Garrow, senhor de Galioch – entoou o pai, consciente de que ela estivera a ouvir atrás da porta e de que já sabia quem era o desconhecido. E ele também sabia e parecia achar piada à situação.

– Muito prazer – Susanna limitou-se a inclinar a cabeça em vez de fazer uma reverência formal. Um erro, a julgar pela testa franzida do pai. O escocês fez uma reverência graciosa.

– Igualmente.

Aparentemente, ensinaram-lhe algumas boas maneiras, concluiu Susanna. Embora não tivesse maneiras suficientes para que a tratasse pelo título dela nem para que se vestisse como devia para uma visita. Nem para respeitar as horas habituais de visita. Porém, fizera-lhes um grande favor avisando-os de um possível ataque, portanto podia perdoá-lo por aquela falta de etiqueta.

– Faz companhia ao nosso convidado, Susanna. Eu volto já.

– Pai, espera! – estendeu a mão para lhe agarrar a manga, contudo, o olhar que ele lhe lançou fê-la parar. Engoliu o impulso de recusar, sabendo que seria inútil, para não dizer humilhante, desafiar o pai em público. Isso selaria o seu destino. Com um pouco de engenho, talvez conseguisse dissuadi-lo daquela ideia.

A porta fechou-se atrás do conde. Susanna não tinha outro remédio a não ser continuar em frente. Virou-se para o escocês.

– Então, está a gostar das suas férias em Edimburgo?

– Férias? – o homem sorriu, com uma expressão tão ousada que chegava a ser irritante. Depois, assinalou a porta do quarto com a cabeça. – Ouve mal ou a porta era demasiado grossa?

Susanna fez o seu olhar de inocência.

– Acho que não estou a compreender, senhor.

O homem suspirou e passeou o olhar pelo escritório, olhando para qualquer sítio menos para ela.

– Era capaz de apostar o meu salário em como ouviu a conversa toda. Claro que não estou a deitar-lhe isso à cara. Só não entendo porque é que ainda não se manifestou – pousou os seus olhos verdes curiosos nela. – Está assim tão desesperada para casar?

Susanna mal conseguia respirar de tão furiosa que estava.

– E a si dão-lhe jeito as terras que o meu pai lhe ofereceu para se ver livre de mim! – exclamou. – Consegue imaginar o quanto isso é ofensivo? E perigoso?

– Perigoso? – James arqueou as sobrancelhas.

– Sim, perigoso! Acha que eu não sei que, quando uma mulher se casa, tudo o que ela tem, herdado ou por mérito próprio, passa para as mãos do marido e ele pode dispor de tudo como quiser? Até pode fazer o que quiser com ela! Porque é que eu ia estragar a minha vida e aceitar uma vida parecida com a escravidão?

– Ah, estou a ouvir a senhora Wollstonecraft.

Susanna cravou o olhar nele.

– Tem lido as suas opiniões?

– Não, mas ouvi falar delas. Não fui eu que criei as leis de que está a falar! – protestou. – É verdade que não são justas e lamento-o, mas...

– Como é que se atreve a ter pena de mim, desavergonhado! – gritou Susanna, respirando com tanta agitação que pensou que estava quase a desmaiar. Fechou os punhos no colo para não os levantar em sinal de raiva.

– É verdade que tenho pena de si, menina – reconheceu. – E sinto uma enorme compaixão por qualquer mulher que se encontre na mesma situação – parou um momento para pensar; depois, pareceu ter tomado uma decisão. – Dirigir uma propriedade do tamanho de Drevers não é tarefa fácil. Se nos casarmos, encarregar-me-ei de que o seu pai a ponha em seu nome.

Susanna soprou.

– E de que servirá isso? Sabe muito bem que uma esposa não pode ter os seus próprios bens.

– Você tê-los-á. Prometo pô-los no seu nome e só no seu. Acho que conseguirei fazê-lo. A única coisa que quero é o cargo de administrador e um pagamento justo pelo meu trabalho. Tenho pessoas a meu cargo e você terá a mesma responsabilidade, se aceitar.

– Pois! – Susanna levantou as mãos. – Porque é que devia confiar em si? Nem sequer o conheço, senhor.

– Porque lhe dou a minha palavra. Se fosse escravo da cobiça, não estaria aqui; a perder o pagamento de um dia de trabalho. E teria exigido uma recompensa, não acha?

A saia ondeava em torno dos tornozelos de Susanna quando ela começou a dar voltas pela sala.

– Você está louco! E o meu pai também!

O escocês riu-se.

– Mas nenhum dos dois está tão louco como você, a julgar pelo fogo do seu olhar. E os seus olhos são bonitos, apesar da fúria que há neles.

Susanna parou mesmo à frente dele, furiosa.

– Porque é que considera a possibilidade de se casar comigo? Sabe o inferno em que eu poderia transformar a sua vida, Garrow? Consegue imaginar?

Ele respondeu com suavidade.

– Já me avisaram. Apostamos?

Susanna pestanejou.

– Apostar? – depois do jogo com o pai, ela não voltaria a tocar noutro baralho enquanto fosse viva. – É claro que não! Não deixo nada à sorte – declarou acaloradamente.

– Então, seja o que Deus quiser – disse o escocês, inclinando suavemente a cabeça.

Quando ela abriu a boca para replicar, ele segurou-a pelos ombros e beijou-a à força. Emocionada, ela sentiu a fraqueza embriagadora e o sabor doce do café da sua língua. Por uma estranha razão, ela não tinha forças para levantar os punhos e bater-lhe. Nunca ninguém a beijara daquela maneira.

Atónita e amaldiçoando-se, Susanna, afastou-se. Ele soltou-a imediatamente.

Em vez do sorriso satisfeito e lascivo que esperava ver, o escocês tinha um semblante quase humilde.

– Casa comigo, Susanna Childers. Prometo pela minha honra fazer todos os possíveis para te proporcionar a liberdade que desejas. A liberdade que qualquer rapariga de espírito livre merece.

Liberdade. Ele adivinhara qual era o maior desejo dela.

De repente, Susanna compreendeu porque é que ele estava a oferecer-lhe o que ela mais desejava.

– És tu – sussurrou, enquanto o observava com olhos entreabertos. – És tu que estás desesperado!

– Sim – reconheceu com suavidade e com um sorriso irónico. – É verdade que estou – depois, prosseguiu com pragmatismo. – Tu não podes voltar para Londres e o teu pai não pensa deixar-te aqui sozinha. Ouviste-o? Diz que podes escolher entre a tua prima de York, com aquelas crianças todas para cuidar, e eu. Duvido que possas tomar as tuas próprias decisões lá. Comigo, não terás ninguém a quem prestar contas, salvo a mim.

– York? Não, perdi essa parte – recuou até uma cadeira e sentou-se para reflectir. – Caramba! – Garrow tinha razão a respeito da prima Matilda. Era uma sargenta e os seus quatro filhos eram uns diabinhos. Susanna voltou a olhar para o escocês. Mas como é que ela poderia viver nas Terras Altas, rodeada de desconhecidos que não gostariam dela por ser inglesa? Como é que poderia viver com um homem que lhe roubava os sentidos com um único beijo?

Suspirou, desesperada. No entanto, detestava os filhos de Matilda, e o marido da sua prima era um velho lascivo que perseguia as raparigas como se fosse um rapaz. E não lhe apetecia receber as suas mais do que prováveis atenções.

O escocês estava à frente dela, com as mãos entrelaçadas atrás das costas, pacientemente à espera que ela se decidisse.

– O nosso casamento não seria consumado, claro – declarou Susanna.

– Nada disso, menina – abanou a cabeça devagar. – Não estou assim tão desesperado.

Ela engoliu em seco ao imaginar o que ele esperaria dela. Embora não conhecesse todos os detalhes, sabia que não seria nada de agradável. Ouvira rumores.

– Mas dar-me-ias tempo... tempo para eu me adaptar. Para te conhecer? – detestava o tom de súplica da sua voz.

– Todo o tempo que precisares – prometeu-lhe, mas acrescentou, – enquanto for razoável. Mais cedo ou mais tarde precisarei de herdeiros, e tu também. Quem é que ficará com o título de conde senão o teu filho? O teu pai disse-me que estás quase a fazer vinte e cinco anos, e eu já tenho quase trinta anos. Não será sensato esperarmos muitos anos, porém, esta também não é uma necessidade imperiosa.

Susanna levantou-se da cadeira; sentia-se em desvantagem por ter de levantar o queixo para olhar para ele, mas mesmo de pé, tinha de o fazer. O escocês era incrivelmente alto e bem constituído, pensou, tentando avaliá-lo como faria antes de comprar um cavalo.

Tinha traços agradáveis, sobretudo, os olhos verdes rodeados pelas pestanas pretas e os lábios sempre prontos a sorrir. E beijava de uma forma deliciosa, recordou contrariada. Alguém lhe partira o nariz, o que lhe conferia um ar de falcão. Sim, tinha de reconhecer que o escocês tinha charme, embora fosse um pouco tosco.

Não seria má ideia dar umas tesouradas no seu cabelo escuro e ondulado. Talvez ele precisasse que alguém o aconselhasse em relação ao que devia vestir. Aquele fato, com a gravata torcida e o pescoço enrugado, era medonho.

Ele também não lhe parecia muito inteligente. Que homem, com algum bom-senso, se arriscaria a casar com uma mulher cuja lista de defeitos fora enumerada por um pai ansioso por se ver livre da filha? Em qualquer caso, dava a impressão de ser um homem que ela poderia, facilmente, superar em engenho. Aquele era um ponto a seu favor, pensou Susanna.

Excepto isso, era muito improvável que encontrasse uma opção melhor em York. Não havia outro remédio, tinha de correr o risco e aceitar.

– Muito bem, aceito o teu pedido de casamento – anunciou num tom formal. – Mas com algumas condições.

– Sim, terá de haver algumas – corroborou. – Começa tu primeiro.

Surpreendida por ele ter acedido, Susanna teve de pensar depressa.

– Ah... bom, precisarei do tempo a que me referi há pouco. Já sabes, antes de... – não parava de mexer as mãos, e entrelaçou-as.

– Já to concedi – assentiu o escocês. – Mais alguma coisa?

Ela apertou os lábios.

– Nunca me imponhas a tua vontade. Preciso de liberdade para ir e vir quando me apetecer, sem fazeres perguntas.

– Ir e vir para onde? Não há muito trânsito nas Terras Altas, rapariga. Viremos aqui ou a Glasgow algumas vezes por ano, suponho. Não é sensato andares por aí sozinha.

– Hum. Começo a compreender porque é que o meu pai achou que este acordo seria benéfico. Quais são as tuas condições?

– Nada de apostas. Lealdade à minha gente e à tua. Fidelidade – disse com gravidade. – E quero que sejas justa nas decisões que tomares.

Susanna esperou um momento. Ao ver que ele não dizia nada, perguntou:

– Mais nada?

– Se pensares bem verás que é bastante, rapariga.

– Não é mais do que eu faria se não me pedisses. Mas tenho mais uma exigência, lorde Garrow.

– O meu nome é James – informou.

Susanna continuou a fazer o seu pedido, à espera que ele se opusesse.

– Deves permitir que expresse a minha opinião em todas as questões, como quero, sem me censurares, mesmo que eu não concorde contigo.

O sorriso brincalhão dele apanhou-a de surpresa.

– Censurar-te? Isso significa castigar-te, não é?

– Sim, senhor, é isso que significa – respondeu, devolvendo-lhe o sorriso enquanto imitava desavergonhadamente a sua forma de falar.

James abanou a cabeça e riu-se; um som alegre que a fez rir a ela também. Era maravilhoso sentir-se alegre, e era ainda melhor saber que não teria de suplicar nada ao seu pai, nem preocupar-se com as suas críticas, nem ceder aos desejos de nenhum homem, nunca mais. Sabia que em pouco tempo James estaria a comer na sua mão. Sabia-o. Finalmente, poderia libertar-se de todas as opressões a que as mulheres eram submetidas há muitos séculos e encorajar outras mulheres.

O pai dela voltou naquele momento. Entrou na sala de estar como se viesse disposto a acalmar a tempestade que rebentara na sua ausência. Parou de repente, claramente perplexo com a alegria da filha.

– O que foi? O que disseste?

– Vá lá, pai, não tinhas o ouvido colado à porta? Ou estás a ficar surdo? Não sabes? Jamie e eu estamos comprometidos.

O escocês riu-se ainda com mais vontade e rodeou-lhe a cintura com o braço, aproximou-a dele e deu-lhe um beijo sonoro na testa. Susanna permitiu sem protestar. Não era assim tão desagradável.

Apesar da motivação dele ser, provavelmente, a vontade de ser dono de Drevers, o desespero de encontrar trabalho ou a simples falta de bom-senso, Susanna desfrutou da sensação insólita de ser apreciada. Passou-lhe um braço pela cintura e devolveu-lhe o abraço. Só o fazia para irritar o pai, porém, gostava de ter um aliado, embora o escocês não o soubesse.

Sim, poderia controlá-lo sem problemas. Em menos de um ano, convencê-lo-ia de que deviam viver em Londres, onde poderia retomar a sua cruzada. O pai não teria o direito de a impedir, e o seu marido não lhe proibiria nada, assim que usasse as suas armas de sedução com ele. Porque ela tinha armas de sedução, tinha quase a certeza.

Quem diria que a sorte voltaria a sorrir-lhe de uma forma tão estranha e rápida? Era uma prova sólida da legitimidade da sua causa.