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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2003 Nicola Cornick. Todos os direitos reservados.

PRESA NAS SUAS REDES, Nº 127 - Junho 2013

Título original: The Chaperon Bride

Publicada originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicada em português em 2007

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-3008-0

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Um

 

Junho 1816

 

A carruagem, vinda de Leeds, entrou nos jardins da estalagem Hope de Harrogate, ao fim da tarde, saindo pelas suas portas um bom número de passageiros. Embora a temporada ainda estivesse a começar, High e Low Harrogate, duas cidades conhecidas pelas suas águas termais, começavam já a encher-se de visitantes que vinham para desfrutar das águas benéficas. Daquela vez, eram sete os recém-chegados. Primeiro saiu uma família de quatro membros: mãe, pai, um rapaz de uns dezasseis anos e uma jovem, um ano mais velha. A seguir, saiu uma senhora idosa, envolta num xaile enorme, ajudada por um jovem solícito. A outra recém-chegada era Annis, lady Wycherley, vestida com um vestido preto prático e um chapéu que não a favorecia.

Harrogate não era um lugar desconhecido para Annis Wycherley. Nascera ali perto e passara muitas férias felizes com os primos, naquela cidade, quando o pai estava de licença. O agora falecido capitão Lafoy até comprara uma propriedade pequena nos subúrbios de Skipton, propriedade que Annis herdara uma década atrás e que visitava sempre que tinha oportunidade. No entanto, não podia ir a Harrogate com a frequência que gostaria. Trabalhava como acompanhante de raparigas da alta sociedade, o que a obrigava a permanecer em Londres durante muito tempo, em Brighton ou em Bath, embora esta última cidade começasse a ser considerada um pouco antiquada, porque era um local demasiado modesto que perdera a sua popularidade. Harrogate, com a sua ambiência romântica, no meio do nada e os desagradáveis, embora saudáveis, cheiros das águas termais e o rústico encanto nortenho, começava a transformar-se numa nova Bath aos olhos da alta sociedade.

Annis distinguiu o seu primo Charles, no meio da multidão que enchia o jardim, e correu para lhe dar um abraço carinhoso. Ele devolveu-lhe o abraço, segurou-a à distância de um braço e percorreu-a com o olhar, com uma expressão dúbia, mas com um brilho inconfundível nos seus olhos azuis.

– Annis, o que fizeste contigo?

Annis riu-se suavemente.

– Querido Charles, eu também fico contente por voltar a ver-te. Suponho que a tua expressão horrorizada se deva ao meu traje de acompanhante.

– Faz-te parecer muito mais velha – Charles olhou desconcertado para o vestido preto e franziu o sobrolho ao fixar-se no chapéu. – Meu Deus, Annis, é maravilhoso voltar a ver-te, mas mal te reconheço.

– Deves saber que é sempre um erro viajar com as tuas melhores roupas. Podes acabar sujo de lama ou de pó. Além disso, como acompanhante profissional, não posso parecer excessivamente elegante.

– Não te preocupes, não corres esse perigo – Charles tentou disfarçar um sorriso. – Fizeste uma boa viagem?

– Um bocado apressada – respondeu Annis. – Deve ser essa a razão por que chamam a veículo «O Rápido». O condutor parece levar isso muito a peito.

– Podia ter enviado uma carruagem para te ir buscar a Leeds.

– Não era necessário – respondeu Annis, alegremente. – Estou habituada a viajar de diligência – cumprimentou a família de quatro membros com um gesto, enquanto o dono do estabelecimento os acompanhava ao interior da estalagem. – Senhor e senhora Fairlie, Amelia, James, espero voltar a vê-los.

– Tens muita facilidade em fazer amigos – observou Charles, enquanto o casal inclinava a cabeça e lhe sorria em resposta.

– Temos de nos entreter de alguma maneira nas viagens, e são uma família muito agradável. Não como aquele jovem – Annis olhou para o jovem cavalheiro que estava a ajudar a idosa a subir para uma carruagem. – Tenho a certeza de que anda atrás do dinheiro dela, Charles. Se eu souber que aquela idosa morreu, vou desconfiar.

– Annis!

– Estou a brincar – Annis desculpou-se precipitadamente, lembrando-se, já demasiado tarde, que o primo conseguia chegar a ser excessivamente educado. – Não ligues. E agora, diz-me, estás bem? E Sibella?

– Estou muito bem – Charles sorriu. – E Sib está óptima. Acho que já sabes que David e ela estão à espera do quarto filho.

– Sim, já ouvi dizer – Annis sorriu e agarrou no braço do primo. – Parece que tem andado muito ocupada, enquanto tu e eu deixamos que a família se vá reduzindo tristemente. Tu nem sequer estás casado e eu ganho a vida a cuidar das filhas dos outros.

Charles desatou a rir-se e bateu na mão que Annis tinha apoiada no braço dele.

– Ainda temos muito tempo. Mas é uma sorte Sibella não ter vindo buscar-te, Annis. Ter-te-ia renegado, mal te visse.

– Sibella é uma mulher com sorte, que pode dar-se ao luxo de ser uma senhora elegante – Annis olhou à sua volta, procurando os seus baús. – Eu vejo-me obrigada a trabalhar para ganhar a vida. No entanto agradeço-te que tenhas sido capaz de engolir o orgulho da família e tenhas vindo buscar-me, Charles. Eu compreendo que não acredites no que estás a ver.

Charles desatou a rir-se.

– Foi uma impressão forte, foi só isso. Mal te reconheci, com esse vestido preto, tão antiquado e sem graça. Dantes eras uma jovem muito atraente.

Annis empurrou-o suavemente.

– E tu também eras um jovem muito atraente!

Charles Lafoy continuava a ser um jovem muito atraente, como a maioria da população feminina de Harrogate estaria disposta a testemunhar. Tal como a irmã dele, Sibella, herdara as feições perfeitas dos Lafoy, uns olhos de um azul sincero e um sorriso encantador. Como advogado do comerciante mais próspero de Harrogate, Samuel Ingram, ocupava uma posição prestigiada entre a alta sociedade da região. E não faltaram empregados dispostos a ajudar o primo a colocar a bagagem de Annis na carruagem dele. Toda a gente sabia que o senhor Lafoy era um homem de gorjetas generosas.

Annis Wycherley era quase tão alta como o primo. Tinha uma altura considerada pouco elegante para uma senhora, mas que era muito útil para uma acompanhante de donzelas, visto que a ajudava a afirmar a sua autoridade. Os seus olhos eram tão castanhos como os de Lafoy eram azuis, contudo tinha o mesmo e abundante cabelo loiro. No caso de Annis, o cabelo raramente via a luz do dia, vivendo quase sempre escondido debaixo de uma sucessão de perucas, chapéus feios e turbantes antiquados. Annis aprendera, muito cedo, que ninguém levava a sério uma acompanhante de cabelo loiro. De facto, podia até chegar a ser perigoso mostrar o cabelo, já que muitos cavalheiros, ao vê-lo, eram capazes de lhe fazer as insinuações mais inapropriadas.

De maneira que os vestidos sem forma, de cor preta, violeta e grená que trazia na bagagem, tinham sido todos pensados com uma única intenção: fazê-la parecer mais velha e feia do que era. Aquele era um requisito da sua profissão. Da mesma maneira que ninguém levava a sério uma acompanhante loira, ninguém confiava a sua filha, sobrinha ou pupila a uma jovem que parecesse acabada de sair da escola. Na verdade, Annis tinha vinte e sete anos e enviuvara oito anos antes, porém possuía um rosto juvenil de olhos grandes, nariz altivo e boca generosa, traços que pareciam escamotear a sensação de gravidade que uma acompanhante profissional requeria. A beleza combinada com a pobreza fora sempre uma receita para o desastre, de modo que Annis fazia os possíveis para disfarçar os seus atractivos naturais.

– Pensei que podíamos ir directamente para a casa de Church Row – disse Charles, enquanto se dirigiam para a carruagem. – Assim terás oportunidade de te instalar comodamente, antes de Sibella ir ver-te, esta noite. Quando chegam as donzelas que tens a teu cargo?

– Não chegam antes de sexta-feira – respondeu Annis. – Sir Robert Crossley vai escoltar as raparigas de Londres e a senhora Hardcastle fará de acompanhante, na minha ausência. E tenho a certeza de que estarão na linha, quando puserem os pés em minha casa – tremeu ligeiramente por causa da brisa. – É curioso, Charles, mal posso acreditar que estejamos em Junho. O vento das montanhas continua tão frio como sempre.

– Parece que viver tanto tempo no sul, acabou por te amolecer – brincou Charles, com carinho. – Essas raparigas, que tens a teu cargo, as meninas Crossley, têm uma fortuna grande?

– Suficientemente grande para comprar meia Harrogate – respondeu Annis.

Esboçou uma careta, ao lembrar-se do encontro que tivera com as duas jovens, em Londres, antes de aceitar cuidar delas.

– Mas receio que nem isso seja suficiente para suportar os modos da menina Fanny Crossley. Aquela rapariga é tão incómoda como um espinho e é muito pouco atraente. Pode transformar-se no meu primeiro fracasso!

– Duvido – Charles sorriu. – Até aqui, em Harrogate, ouvimos falar dos sucessos espantosos da casamenteira por excelência, lady Wycherley. Comenta-se que és capaz de arranjar marido para qualquer rapariga, mesmo que seja feia como tudo e pobre como um rato de igreja.

– Se for uma das duas talvez, mas com ambas é impossível – Annis soltou uma gargalhada. – Tu não andas à procura de uma namorada rica, pois não, Charles?

– Não! – o primo observou como carregavam as últimas malas para a carruagem. – No entanto, tenho um cliente que está nessa situação. Sir Everard Doble, um homem muito digno, mas de poucos sucessos financeiros. Tem uma propriedade completamente hipotecada. Podemos organizar um encontro entre ele e as tuas meninas.

– Querido Charles – replicou Annis agradecida, – tenho a sensação de que já tenho metade da tarefa feita. Quanto à menina Lucy Crossley, ao contrário da irmã mais velha, é uma jovem doce, que conseguiria casar com qualquer um dos muitos militares que parecem abarrotar por cá. Não acredito que nenhuma das duas irmãs acabe por fazer um casamento deslumbrante, mas é possível casá-las com alguém decente. Dessa forma – Annis suspirou, – resolvia o problema e podia passar algum tempo em Starbeck. Essa é a verdadeira razão por que aceitei o encargo de sir Robert. Queria passar algum tempo em casa.

Charles franziu ligeiramente o sobrolho.

– Ah, Starbeck. Sabes que não consegui conservar nenhum inquilino, durante os últimos meses, e que a casa está num estado deplorável? Depois preciso de falar contigo sobre esse assunto, prima.

Annis olhou para ele bruscamente. Havia algo de estranho no tom dele, uma falta de vontade, que fez com que o seu coração deixasse de bater, porque não augurava nada de bom. A pequena propriedade de Starbeck implicava um gasto elevado, dentro dos seus rendimentos reduzidos, e sabia que Charles pensava que era uma parvoíce sentimental mantê-la. Ele administrava a propriedade desde que o pai de Annis falecera e, durante alguns anos, pressionara-a para que a vendesse. A casa estava em ruínas e era uma fonte inesgotável de despesas, com reparações constantes. Charles fora incapaz de encontrar um inquilino que quisesse ficar nela durante um longo período de tempo e a quinta era tão pobre, que os seus arrendatários mal conseguiam o suficiente para viver. Como Annis só tinha o dinheiro que ganhava, mais uma pequena renda vitalícia, era uma tolice continuar a sustentar Starbeck, contudo, mesmo assim, não queria desfazer-se dela. Tivera uma infância de nómada, seguindo o pai pelo país inteiro, e inclusive viajara com os pais para o estrangeiro, em diversas ocasiões. Starbeck era o lar dela, o único que conhecia, e por essa mesma razão não queria perdê-lo.

– É claro, podemos falar... – começou a dizer, mas interrompeu-se ao ver um faeton verde e dourado entrar nos jardins da estalagem, dispersando os cavalariços, como se fossem galinhas assustadas.

– Por amor de Deus! – Charles ficou vermelho de fúria e afastou-se do caminho, para evitar que uma das rodas do faeton lhe passasse por cima do pé.

Annis tentou não se rir. O primo fora sempre o mais responsável dos três. Talvez por ser o mais velho ou, provavelmente, por ser o único homem e, como tal, o chefe da família. Fosse qual fosse a razão, a questão era que deplorava a frivolidade.

Eram dois os ocupantes daquele faeton flamejante, uma senhora e um cavalheiro. A senhora, uma morena muito bem dotada, ia envolta em peles e ria-se, enquanto tentava agarrar o chapéu espampanante, que cobria os seus caracóis escuros. Com uns olhos castanhos vivazes, escrutinou as pessoas ali paradas. Parou, por um instante, no rosto corado de Charles e ignorou completamente o de Annis, antes de agarrar a mão que o acompanhante lhe oferecia e saltar para se juntar a ele, no jardim. O proprietário da estalagem saiu naquele preciso momento e fez uma reverência entusiasta, ao mesmo tempo que lhes indicava com um gesto que entrassem.

– Ashwick! – Annis ouviu o primo dizer, quase num sussurro.

Annis dirigiu-lhe um olhar rápido. Voltou a sentir um tom estranho na voz de Charles que não era capaz de interpretar. Não era de inveja, nem de desaprovação, e ambas as coisas teriam sido compreensíveis, tratando-se de um advogado do campo face a um casal elegante da corte. Annis conhecia lorde Ashwick, claro. Ninguém que tivesse ajudado uma jovem a apresentar-se à alta sociedade, durante os últimos três anos, podia ignorar aquele homem, que era conhecido por jogar alto e por se fazer acompanhar pelas mais baixas companhias. Adam Ashwick era amigo de homens como o duque de Fleet ou o conde de Tallant, que escandalizaram a cidade com as suas façanhas, durante anos. Tallant casara-se e acabara submetido à vontade da mulher, mas as actividades de Sebastian Fleet e de Adam Ashwick continuavam a alimentar rumores. E era extraordinário encontrá-lo num lugar tão afastado como Harrogate.

O casal teve de passar diante deles para chegar à porta. Annis recuou para a carruagem. Não queria que reparassem nela. No entanto, para sua surpresa, Adam Ashwick parou em frente deles e inclinou a cabeça para Charles.

– Lafoy – o tom era frio.

– Ashwick.

Gerou-se um silêncio carregado de tensão. Annis olhava para eles alternadamente, sentindo entre eles todo o tipo de ressentimentos, que não era capaz de explicar. Ashwick observava Charles com um sorriso desagradável nos lábios e Annis aproveitou aquela oportunidade para o observar.

À primeira vista, não era um homem bonito no sentido tradicional da palavra. A pele era demasiado escura e os traços, excessivamente duros para serem considerados atraentes. Tinha os olhos grandes e de um cinzento gélido, debaixo de umas sobrancelhas pretas e direitas. Embora tivesse pouco mais de trinta anos, o cabelo, preto e denso, já tinha alguns cabelos brancos, o que dava alguma distinção ao seu aspecto. Era alto e de compleição atlética, e ia vestido com umas calças cinzentas e um casaco preto que fazia a camisa parecer muito mais branca. Em vez de botas elegantes, usava umas botas de couro de montar. Parecia mais um homem de acção do que um aristocrata e exalava poder. Annis conseguia senti-lo. Era diferente da confiança que Charles possuía, como profissional de sucesso. A autoridade de Ashwick era algo instintivo.

Desviou os olhos cinzentos para ela e Annis baixou precipitadamente o olhar. Não queria que pensasse que estava a olhar para ele. Adam Ashwick voltou a inclinar a cabeça, com uma cortesia escrupulosa, daquela vez.

– Senhora.

– A minha prima Annis, lady Wycherley – disse Charles, com um desinteresse tão evidente, que Annis apertou os lábios.

Não tinha a certeza se a relutância de Charles em apresentá-la se devia a desaprovar a reputação de Ashwick ou a algum tipo de desgosto de índole mais pessoal. Um segundo depois, compreendeu que Adam Ashwick também estava a pensar nas razões da preocupação protectora de Charles. Quando os seus olhos se encontraram, arqueou uma sobrancelha, com uma expressão interrogante, enquanto ambos partilhavam um momento de diversão. Annis interrompeu, precipitadamente, aquele contacto visual, sentindo-se um pouco desleal.

Estendeu-lhe a mão educadamente.

– Como está o senhor?

– Ao seu dispor, lady Wycherley – Adam agarrou na mão dela.

Annis sentiu-se impulsionada a olhar para ele outra vez e imediatamente desejou não o ter feito. Adam estava a examiná-la com atenção, passando o olhar pelo rosto dela, deliberadamente. Havia um interesse definitivo e masculino na apreciação dele, reconheceu Annis. Sentiu-se tremer e retirou imediatamente a mão.

A bela acompanhante de Adam começara a impacientar-se perante a falta de atenção. Puxou-lhe o braço.

– Não vais apresentar-me, Ashy, querido? – tinha um bonito e suave sotaque francês. Olhou para Adam, debaixo do seu chapéu alegre, com o encanto de uma menina marota.

Ashy!, pensou Annis, fazendo um esforço para não desatar a rir-se, perante aquele diminutivo. Olhou para Ashwick nos olhos e voltou a desviar rapidamente o olhar, com medo que ele pudesse ler-lhe o pensamento. Não pretendia procurar aquele tipo de afinidade com ele.

– Margot, apresento-te lady Wycherley e o seu primo, o senhor Charles Lafoy.

Ashwick mostrou-se indiferente, como se o momento de inimizade com Charles nunca tivesse existido. A mulher cumprimentou Annis com uma inclinação de cabeça e pestanejou quando olhou para Charles, num gesto visivelmente sedutor. Annis sentiu-se ligeiramente divertida, e, simultaneamente, um pouco irritada. Todo o jardim parecia ter parado, para observar aquela beleza e Annis perguntava-se, como fizera muitas outras vezes, porque é que as pessoas pareciam sentir-se tão atraídas pelo óbvio. Já perdera a conta das muitas vezes em que debutantes magníficas eram esquecidas assim que aparecia uma jovem mais atraente. O mesmo estava a acontecer ali. Os cavalariços estavam de boca aberta, os viajantes olhavam para ela com admiração e alguns dos hóspedes até apareciam às janelas dos seus quartos, para admirar a acompanhante de Ashwick.

– Eu sou Margot Mardyn – disse, com o ar de alguém que estivesse a fazer uma revelação importante. – Suponho que já terão ouvido falar de mim.

– É claro – respondeu Annis, precipitadamente. – Ouvi dizer que teremos o privilégio de apreciar uma das suas actuações no Teatro Real, este Verão, menina Mardyn. Eu e o meu primo iremos assistir.

Margot Mardyn assentiu, enquanto dirigia o mais cativante dos seus sorrisos a Charles.

– Espero vê-lo depois da minha actuação – disse-lhe e apertou o braço de Ashy. – Vamos, tenho frio. Este lugar é surpreendentemente primitivo. Sabe que – virou-se para Charles, com um gesto de confiança excessiva, – em algumas das estalagens nas quais parámos, durante o trajecto, obrigaram-nos a beber directamente da torneira? Meu Deus! Com toda a plebe que as frequenta. Vamos, Ashy!

Annis olhou para lorde Ashwick e descobriu, desconcertada, que continuava a observá-la. Lorde Ashwick inclinou a cabeça e dirigiu-lhe um sorriso suave, que Annis achou ainda mais desconcertante. Brincou com as luvas e esperou não ter corado. Sabendo-se imune aos encantos dos cavalheiros solteiros, achava muito estranho sentir aquela curiosidade por um homem cujo estilo de vida era tão diferente do dela. Todavia não podia negá-lo: ambos pareciam particularmente conscientes da presença um do outro. Era extremamente desconcertante.

– Estou ansioso por voltar a vê-la, lady Wycherley – disse Ashwick educadamente. – E espero que aproveite a sua estadia em Harrogate.

– O que foi aquilo? – perguntou Charles, perplexo, enquanto Ashwick entrava com a acompanhante na estalem e acabava com a expectativa criada no jardim.

– Aquilo foi lorde Ashwick – respondeu Annis, secamente. – E suponho que o conheces, não?

– É claro que conheço Ashwick – Charles virou-se para ela, com impaciência. – A família dele tem propriedades por esta zona, há centenas de anos.

– É claro – recordou Annis.

Os Ashwick faziam parte da longa e turbulenta história de Yorkshire, desde há séculos, desde a época em que o primeiro barão serviu na corte de Carlos II e recebeu uma propriedade em troca da sua dedicação. Presumivelmente, lorde Ashwick estava em Yorkshire para visitar essa mesma propriedade. Annis deu por si a perguntar-se se voltaria a vê-lo.

Charles continuava a olhar, por cima do ombro, para o lugar por onde o casal desaparecera.

– Annis? Conheces aquela senhora?

– A adorável menina Mardyn. É uma bailarina e cantora, que recentemente honrou o palco de Drury Lane com a sua presença – Annis olhou para ele com uma expressão sarcástica. – Charles, agradecia-te que me ajudasses a subir para a carruagem. Estamos há mais de dez minutos aqui e, como a menina Mardyn observou, tão sucintamente, está frio.

Esperou, até estarem instalados nos bancos vermelhos e macios da carruagem dos Lafoy, para acrescentar:

– Durante a viagem, disseram-me que a menina Mardyn vai entreter-nos com Il Figlio d’Alecchino Perduto e Ritrovato. O senhor Fairlie esteve a falar-me sobre isso e estava muito entusiasmado. Acho que os bilhetes vão esgotar, por isso é melhor que compres o teu.

– Aquela criatura é bailarina? – Charles estava boquiaberto. – Mas não deve ter mais de dezassete anos!

– Trinta e cinco – replicou Annis alegremente, reflectindo com pesar que os homens se deixavam cegar por qualquer rosto bonito. – E, segundo sei, é do cais de Portmouth Docks, e não de Paris.

Charles parecia espantado e fascinado ao mesmo tempo.

– Meu Deus! E que relação tem com Ashwick?

Annis dirigiu-lhe um olhar expressivo.

– Oh – respondeu Charles.

– Bom, também é possível que lorde Ashwick esteja a acompanhar a menina Mardyn, para fazer um favor a um amigo – replicou Annis, tentando ser justa. – Quando saí de Londres, comentava-se que era amante do duque de Fleet. Quem havia de pensar que uma ave-do-paraíso pudesse pousar num lugar como Harrogate?

– Falas com muita liberdade, Annis – disse Charles, com uma expressão séria. – Deve ser o efeito da vida londrina. Espero que não incentives as donzelas que tens a teu cargo a fazer caso desse tipo de mexericos.

Annis soltou uma gargalhada.

– Lamento muito, se ofendi a tua sensibilidade, Charles. Não fazia a menor ideia de que eras tão puritano.

A carruagem saiu, com dificuldade, do jardim da estalagem e virou para Silver Street. Estavam muito perto da casa que Charles alugara para Annis, mas teria sido impossível ir a pé até lá, com a bagagem toda. Annis inclinou-se para a frente para contemplar, através da janela, os campos banhados pelo sol da tarde.

– É uma delícia ter voltado! Acho que a última vez que estive aqui foi há dois anos e foi uma viagem muito rápida. Diz-me, Charles – virou-se e olhou para ele, com uma expressão pensativa, – a que se deve a tua inimizade com lorde Ashwick? Nem sequer sabia que se conheciam.

Charles mexeu-se, incomodado, no banco.

– Conheci-o no ano passado, quando o cunhado dele faleceu. É uma questão um bocado difícil, Annis – Charles suspirou. – O falecido lorde Tilney, cunhado de Ashwick, estava envolvido num negócio com o senhor Ingram, mas fracassou, e Ingram saldou todas as suas dívidas. Quando morreu, Humphrey Tilney devia muito dinheiro a Ingram. Ashwick concordou em tratar da dívida, para salvar a irmã da ruína. Esta situação criou algumas dificuldades.

Annis arqueou as sobrancelhas. Samuel Ingram, o cliente mais poderoso de Charles, era um homem que não tinha consideração nenhuma por aqueles que se opunham aos seus negócios. E podia imaginar que um homem do calibre de lorde Ashwick se ressentisse profundamente por estar em dívida com ele.

– E que tipo de negócio era esse?

– Provavelmente deves lembrar-te, porque saiu nos jornais. Ingram e Humphrey Rilney eram proprietários do Northern Prince, um navio que se afundou, há uns dezoito meses, quando chegava carregado de bens e dinheiro das colónias. Foi um verdadeiro desastre.

– Imagino – Annis franziu o sobrolho. – Não diziam que o navio transportava uma fortuna em ouro?

– Exactamente, para além de cheques, prata, e só Deus sabe que outras coisas muitas valiosas.

– Mas suponho que estava tudo segurado.

Charles mexeu-se, desconfortável, no banco.

– Sim, mas Humphrey Tilney contraíra demasiadas obrigações financeiras para suportar a sua parte na empresa. Em circunstâncias normais, teria recuperado as perdas em poucos anos, mas, tal como as coisas correram, acabou por ficar a dever trinta vezes mais. Ingram encarregou-se da dívida dele, para o ajudar e para evitar que continuasse a perder-se nas garras dos agiotas.

– Que caridoso da parte dele – disse Annis secamente, pensando que um homem como Samuel Ingram nunca fazia nada por bondade.

Charles franziu o sobrolho, ao perceber o tom de censura na voz dela.

– Olha, Annis, Ingram aplicou-lhe uns juros muito razoáveis.

– E mesmo assim ficas espantado que lorde Ashwick esteja ressentido! – acrescentou Annis, ainda mais secamente.

Charles percebeu que ela tinha razão.

– É assim que este negócio funciona.

– Sim, imagino. E suponho que não haja dúvida nenhuma sobre o facto de o navio se ter mesmo afundado. Ingram não terá provocado isto tudo para enganar as seguradoras, pois não?

Charles olhou para ela, horrorizado.

– É claro que não, Annis! É claro que o navio se afundou! Por amor de Deus, que não te passe pela cabeça dizer essas coisas em público.

Annis surpreendeu-se com a veemência dele.

– Está bem, Charles, não é preciso ficares assim. Eu só fiz uma pergunta. E, falando de Ingram, li no Leeds Mercury que houve um incêndio na quinta dele, em Shawes. Não te parece muito suspeito?

Charles dirigiu-lhe um olhar duro.

– Nada, porque perguntas?

– Não precisas de fingir comigo, Charles. Sei que o senhor Ingram não é um homem popular, nesta zona. Sei que o incêndio foi provocado e que as propriedades dele estão ameaçadas.

Charles olhou para ela, receoso.

– Sim, bom, admito que houve algumas dificuldades nas propriedades de Shawes e que houve alguma confusão por causa da subida das rendas.

– Falas como um advogado! – exclamou Annis, com um suspiro.

– Bom e sou-o. E além disso sou o advogado de Ingram. Não devo deixar-me apaixonar por este assunto.

– Eu diria que o senhor Ingram acha que deves apoiá-lo – respondeu Annis secamente. – Ao fim e ao cabo, é para isso que te paga.

Charles corou violentamente.

– Annis, é preciso seres tão fria? Surpreende-me que consigas encontrar marido para aquelas jovens, se falares com os noivos tão bruscamente como comigo.

– Felizmente, os cavalheiros vão casar-se com elas, não comigo – replicou Annis, alegremente. – Eu já não procuro marido, como bem sabes, Charles.

– E não entendo porquê. Pelo menos dessa forma, não terias de trabalhar.

– Obrigada, mas prefiro ser independente. Sabes que eu não gosto de estar sem fazer nada. Além disso, acho que o casamento não foi feito para mim.

– Não me surpreende, se falavas com John com tanta franqueza como falas comigo.

Annis juntou as mãos e olhou para a janela. Não era segredo nenhum que ela e o marido não foram felizes, todavia, mesmo depois de oito anos de viuvez, aquela lembrança causava-lhe dor.

– Lamento muito, Annis – Charles parecia arrependido. – Não quis ofender-te.

– Não faz mal, Charles – respondeu ela. – Sabes que John tinha opiniões muito firmes sobre as mulheres e o lugar delas. E agora que já não tenho de respeitar o ponto de vista dele, receio ter ficado demasiado sincera.

– Creio que haverá homens que gostam de viúvas que lêem os jornais e têm opiniões – disse Charles, com algum receio.

– Achas? Eu não conheci nenhum – Annis sorriu. – Por isso talvez seja uma sorte não estar à procura de marido.

A carruagem parou em frente a uma casa de pedra cinzenta e virou para passar sob um arco, que dava acesso a um pátio pavimentado e a uns estábulos.

– Há um jardim na parte de trás – explicou-lhe Charles, – e contratei alguns empregados. Como tu mesma disseste, a senhora Hardcastle será a governanta, por isso acho que vai querer cuidar de todos os assuntos da casa, mal chegue.

– É claro, Hardy tratará de tudo.

– Há uma sala pequena e um roupeiro, em cada um dos quartos – continuou Charles, tentando emendar a anterior falta de sensibilidade. – É uma casa muito moderna. Tenho a certeza de que é exactamente o que me pediste, Annis.

– Obrigada – Annis agarrou na mão dele, para descer da carruagem. – A fachada principal é linda.

– E as lojas não ficam longe.

– Parece-me um local tranquilo e recomendável para as meninas Crossley. Espero que não haja tabernas, nem vizinhos barulhentos. Eu não gostava que as minhas pupilas tivessem de se cruzar com companhias pouco recomendáveis.

Charles ia abrir a boca para responder, quando o ruído de uma carruagem o fez virar-se. Um faeton verde e dourado passava a toda a velocidade, em frente à casa, com os seus ocupantes a rirem-se às gargalhadas. A carruagem virou para entrar no pátio de uma casa próxima.

Annis arqueou as sobrancelhas.

– Presumo que aqueles sejam os meus vizinhos.

– Oh, querida – murmurou Charles com pesar.

 

 

– Ashy, querido – disse Margot Mardyn docemente, aninhando-se no braço da poltrona que Adam Ashwick ocupava, – o que diria a tua mãe se soubesse que me trouxeste para aqui?

Adam levantou brevemente o olhar do York Herald. O decote da diva estava tentadoramente perto do nariz dele. Era um decote macio e rosado e com um cheiro a rosas enjoativo. Adam olhou para ela com uma expressão pensativa e voltou novamente ao jornal.

– Margot, querida, faz o favor de te sentar. Estás a tirar-me a luz. E tenho a certeza de que Tranter está quase a chegar com o chá.

A menina Mardyn levantou-se para se sentar no sofá.

– Ashy – baixou a voz consideravelmente. – Não respondeste à minha pergunta.

Adam suspirou e pousou o jornal. Sabia que não teria oportunidade de acabar de o ler, até que tivesse partilhado o chá com a menina Mardyn e a tivesse enviado de volta para o quarto dela, no hotel Granby. A intenção de a enviar directamente para lá viu-se frustrada, quando um dos cavalos perdeu uma ferradura, o que os obrigou a parar na estalagem Hope. Depois daquele episódio, Margot insistiu que não havia nada que lhe apetecesse mais do que tomar chá em Church Row.

– Estou convencido de que a minha mãe ia adorar ver-te aqui, Margot – respondeu. – E vai lamentar não ter podido ver-te.

– Mas nós estamos aqui – Margot murmurou, pestanejando, – e podíamos procurar uma maneira de passar um momento mais agradável juntos.

Adam arqueou as sobrancelhas.

– Claro que podíamos, querida. Podemos falar, beber um chá e até – sorriu-lhe, – planear um passeio a Knaresborough.

A menina Mardyn franziu o sobrolho, num gesto muito pouco satisfeito.

– Eu estava a pensar em algo muito mais excitante, Ashy!

– A sério? – perguntou Adam. – Meu amor, duvido que Seb gostasse que eu aceitasse a tua oferta.

– Sebastian nunca descobrirá – respondeu a cantora. – Por favor, Ashy. Sou uma mulher muito curiosa. Suplico-te que me concedas este capricho. Lydia Trent diz que és um garanhão magnífico.

– Estou em dívida com a menina Trent pela sua descrição entusiasta – respondeu Adam, arrastando as palavras. – Apesar de tudo, a resposta continua a ser não, querida. Sebastian Fleet podia não chegar a descobrir, mas eu ia saber que traí a amizade dele.

– Os homens e a honra! – refilou Margot. – Não vale a pena perdê-la por mim?

A resposta, reflectiu Adam, era decididamente «não», mas nem sequer ele, conhecido por dizer sempre o que pensava, podia ser tão pouco cavalheiro para o confessar. Adam estava viúvo há nove anos e, durante esse tempo, desfrutara dos favores de um pequeno número de cantoras de ópera, actrizes e bailarinas como a menina Trent, lista a que teria de acrescentar algumas senhoras chatas da alta sociedade. Mesmo assim, tinha a sensação de que não merecia o título de garanhão que muitas lhe atribuíam. Apesar do estranho louvor da menina Trent, as conquistas sexuais não eram uma actividade que achasse particularmente interessante. Havia qualquer coisa deploravelmente mecânica em muitas das relações amorosas que o rodeavam, enquanto ele, que conhecera uma vez o verdadeiro amor, era no fundo um romântico.

Seis meses antes, o passado voltara a apanhá-lo e pusera um fim definitivo nas suas tendências mais libertinas. Naquela noite longínqua, estavam a jantar na casa de Joss Tallant, ele, Seb Fleet e outros bons amigos. A pouco e pouco, os outros foram saindo para os diferentes clubes e bailes da cidade, ficando ele e Joss a partilhar uma garrafa de uísque de malte e a falar dos velhos tempos e dos que ainda estavam por chegar. Em determinado momento da conversa, Amy Tallant entrou na sala, deu um beijo ao marido e disse-lhe para não se deitar muito tarde. Pelo olhar de Joss, Adam imaginou que não ia demorar muito para ser educadamente convidado a sair, para que Joss pudesse ir ter com a esposa. E foi então que aconteceu. Adam sentiu um ataque de ciúmes repentino e inesperado e uma tristeza atravessou-o como uma espada. Não que invejasse a esposa de Joss, por mais serena e encantadora que Amy fosse. Todavia, pela primeira vez em muitos anos, lembrou-se do calor, da intimidade e do prazer puro do casamento, e deixava-o doente pensar que o tivera e o perdera.

Joss reparou no olhar dele e, como bom amigo que era, incentivou-o a falar sobre o que se passava com ele. Ficaram a falar até de madrugada. No dia seguinte, Adam enviou a Amy um ramo de flores com um pedido de desculpas por ter retido o marido dela. No entanto a dor da perda não desaparecera e sabia que nunca ia encontrar o que estava à procura nos bordéis de Covent Garden. Nem sequer ia tentar. Os favores de Margot Mardyn, que outros homens procuravam com tanto entusiasmo, não eram para ele.

A menina Mardyn percebeu que deixara de lhe prestar atenção. Aproximou-se da janela e afastou as cortinas para olhar, com curiosidade, para o exterior.

– Meu Deus, Ashy. É aquele cavalheiro tão educado que conhecemos na estalagem. Eu adoro os homens como ele, tão esmerados, tão correctos. Dá-me vontade de lhes rasgar a roupa e de os abanar.

– E estou convencido de que Lafoy ia adorar que o fizesses – respondeu Adam secamente. – E deixa a cortina em paz, querida. Esse hábito é tão burguês!

Mas a menina Mardyn estava a gostar demasiado para lhe obedecer.

– Acho que são os teus vizinhos, Ashy. Oh, anda cá ver. Está com a prima extravagante dele. Alguma vez viste um chapéu tão feio?

Adam sentiu uma onda de irritação, que não tinha nada a ver com a conversa da menina Mardyn. Não fazia a menor ideia de porque é que Charles Lafoy sentia necessidade de proteger a prima, mas a verdade é que estava ali. Quando viu Annis Wycherley na estalagem, pensou tratar-se de uma criatura aborrecida, daquele tipo imediatamente reconhecível, como as professoras ou as tutoras, mulheres antiquadas, sem graça, muito correctas e aborrecidas. Todavia assim que trocaram um olhar e viu o brilho decidido dos olhos dela, compreendeu o seu erro. Esteve a observá-la durante a conversa e viu-a disfarçar o seu divertimento, perante a afectação de Margot e o desconforto de Lafoy. Aquilo implicava alguma sofisticação intelectual que o intrigava. Era como se houvesse outra pessoa escondida por detrás daquele exterior aborrecido de acompanhante. E, ao mesmo tempo, aquela mulher pareceu-lhe muito inocente. Pelo menos o suficiente, para não ser capaz de esconder que não lhe era completamente indiferente. Aquilo encantara-o. E queria voltar a vê-la.

E pôde vê-la, naquele momento, a passear debaixo das árvores de frutos, do fundo do jardim. Do jardim da sua própria casa descia uma ladeira, desde o terraço até um caminho estreito, acabando nas sebes do jardim dos vizinhos. Em circunstâncias normais, era algo que não teria contado com a sua aprovação. Ele era um homem zeloso da sua intimidade e as casas de Harrogate estavam demasiado perto umas das outras. Ele preferia a propriedade de Eynhallow, um lugar distante, virgem e fora do alcance dos olhares indiscretos.

Adam observou Charles Lafoy estender a mão à prima para a ajudar a descer. Não gostava nada de Lafoy por este ter auxiliado Samuel Ingram a depenar o seu cunhado. Embora fosse capaz de aceitar que o afundamento do Northern Prince fora unicamente uma questão de azar, custou-lhe muito que Ingram tivesse convencido Humphrey a ser seu sócio, naquela empresa. Humphrey Tilney fora um homem fraco, facilmente influenciável, perante a perspectiva de fazer fortuna. Contudo acabara por perder tudo e deixar à esposa o incómodo papel de devedora de Ingram.

Quando Humphrey faleceu, no ano anterior, e Adam descobriu a extensão das suas dívidas, sentiu-se na obrigação de cuidar delas, para salvar a irmã da ignomínia. Fora um episódio tão irritante como humilhante. Ingram não escondeu o seu divertimento com aquela situação toda e Adam odiava-o por isso.

No entanto não podia culpar lady Wycherley pelos pecados do primo. E saber que eram vizinhos acrescentava qualquer coisa de agradável ao que, de outra maneira, teria sido uma estadia aborrecida em Harrogate. Ao princípio, Adam só tinha a intenção de fazer uma visita curta à propriedade, em Eynhallow, no entanto, naquele momento, pensou que talvez pudesse ficar mais algum tempo e conseguir informações sobre Annis Wycherley. Podia tornar-se interessante.

– Olha! – a menina Mardyn estava a apontar para Annis, naquele momento. – Que quinquilharia! Até tremo, só de pensar que pode haver mulheres como ela no mundo.

– És uma verdadeira harpia, Margot – disse Adam. Sorriu para si, ao ver que a sua acompanhante não sabia se havia de se rir ou ficar zangada perante aquela descrição pouco lisonjeadora do carácter dela. Optou por fazer beicinho.

– E tu és tão cruel, Ashy. Acho que és o homem mais mal-educado de Londres.

– Parvoíces. Há muitos homens com piores maneiras do que eu. Eu simplesmente digo o que penso.

– Pois então não digas – a menina Mardyn virou-se. – Ou, se o fizeres, diz o que pensas de lady Wycherley e daquele chapéu horrível.

Adam suspirou. Naquele momento estava a ver Annis a andar lentamente pelo caminho e a falar com o primo. O vestido preto favorecia-a muito pouco, podia mesmo dizer-se que tornava a sua figura feia, além de a fazer parecer pálida e antiquada. Mas, por outro lado, Adam pôde ver que tinha uma figura esbelta, que se movimentava com uma elegância inconsciente, ao caminhar. Quanto ao chapéu, não merecia nada melhor do que ser destruído.

Enquanto Adam a observava, lady Wycherley desatou os laços do chapéu e, com um gesto impaciente, tirou-o. O chapéu caiu no chão e rebolou até junto de uma das árvores do jardim e Annis Wycherley desatou a rir-se. Adam ouviu-a. O sol da tarde iluminava-lhe o rosto, fazendo-a parecer jovem, livre e feliz.

– Que Deus me ajude – disse a menina Mardyn, esquecendo-se do sotaque francês, durante uns segundos, – olha para aquele cabelo!

Adam voltou a olhar. E ficou paralisado. Continuou a olhar fixamente. Uma vez sem o chapéu, a longa e loira cabeleira de Annis Wycherley caía em cascata sobre os ombros. O cabelo brilhava ao sol como uma moeda nova e emoldurava um rosto com forma de coração repentinamente embelezado.

– Bolas – Adam viu-se a sorrir. – O que tens agora para dizer, Margot?

– Acho que deve ser completamente estúpida, para esconder aquela beleza – respondeu com mordacidade. Voltou a recuperar a antiga pose e afastou-se da janela. – É realmente incrível. Com aquele homem e um cabelo como aquele, podia ser uma verdadeira cortesã. Não tão atraente como eu, mas...

– Acho que disfarça a própria beleza por ser uma acompanhante de donzelas – disse Adam.

Não conhecera Annis Wycherley em Londres, porém lembrava-se de que tinha a fama de ser capaz de casar as donzelas menos prometedoras. E ele acabara de se aperceber de que ela própria representava muitas promessas.

– Ninguém a contratava como acompanhante, se ofuscasse a beleza das donzelas que tem a seu cargo.

A menina Mardyn olhou para ele, sem compreender.

– E porquê trabalhar como acompanhante, se pode ser sustentada por um homem? Não percebo.

– Não – murmurou Adam, – acho que não percebes.

Observou Annis Wycherley durante uns instantes, depois regressou à poltrona e agarrou novamente no jornal, no preciso momento em que Tranter, o mordomo, entrava na sala com a bandeja do chá. Numa das notícias dizia-se que Samuel Ingram andava a comprar terras arrendadas e a pôr pedágios na estrada de Skipton. Um deles estaria perto de Eynhallow.

– O que pensas sobre a actual situação dos investimento nas estradas? – perguntou à menina Mardyn, enquanto serviam o chá.

A menina Mardyn dirigiu um sorriso encantador ao mordomo estupefacto e virou-se para o anfitrião.

– Não tenho opinião sobre esse assunto, Ashy, querido. Devias sabê-lo. A política, a economia, tudo isso me aborrece. Nunca leio os jornais – olhou para ele, pensativa. – E estou a começar a perceber que estás a tornar-te muito chato. Devia ter aceitado ir para Chelthenham, em vez de Harrogate, este Verão. Ouvi dizer que as lojas são muito melhores.

Adam sorriu.

– Peço desculpa por ser uma companhia tão aborrecida, querida. Talvez encontres outros cavalheiros que te agradem mais. Como o senhor Lafoy, por exemplo.

Margot descartou Charles Lafoy com um gesto.

– Oh, seria divertido conquistá-lo, mas, creio que deve ser muito aborrecido. Não há outros cavalheiros em Harrogate, Ashy? Eu também tenho de me divertir.

– Aqui diz que o conde e a condessa de Glasgow devem vir para estes lados, esta temporada – disse Adam, consultando o jornal, – embora receie que o conde possa ser um pouco fraco para ti e não tenha dinheiro suficiente no bolso, para compensar a falta de energia. E também há lorde Boyles, embora, tendo em conta o seu conhecido mau feitio, também não é uma boa ideia. Ah, e sir Everard Doble! É um jovem bastante bonito, se a memória não me falha. Ele podia ser um bom candidato.

Sir Everard Doble – repetiu a menina Mardyn. – Bom, depois vemos, Ashy. E tu como pensas divertir-te?

– Oh, eu tenho muitas coisas com que me ocupar, Margot. Receio que os meus negócios me mantenham muito distraído.

O som de uma gargalhada feminina veio do jardim, uma gargalhada espontânea e contagiosa. Adam semicerrou os olhos. E resolveu descobrir mais sobre Annis Wycherley. Parecia-lhe uma acompanhante muito pouco usual.

– Isso soa-me terrivelmente aborrecido, querido – respondeu Margot, com um bocejo.

– Pelo contrário – respondeu Adam, com um sorriso, – tenho a sensação de que vai ser muito interessante.