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Editados por HARLEQUIN IBÉRICA, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

© 2001 Nicola Cornick. Todos os direitos reservados.

SEGREDOS DE SOCIEDADE, Nº 88 - Junho 2013

Título original: The Blanchland Secret

Publicada originalmente por Harlequin Enterprises, Ltd.

Publicado em português em 2005

 

Todos os direitos, incluindo os de reprodução total ou parcial, são reservados. Esta edição foi publicada com a autorização de Harlequin Enterprises II BV.

Todas as personagens deste livro são fictícias. Qualquer semelhança com alguma pessoa, viva ou morta, é pura coincidência.

™ ® Harlequin y logotipo Harlequin são marcas registadas por Harlequin Enterprises II BV.

® e ™ São marcas registadas pela Harlequin Enterprises Limited e suas filiais, utilizadas com licença. As marcas que têm ® estão registadas na Oficina Española de Patentes y Marcas e noutros países.

 

I.S.B.N.: 978-84-687-3002-8

Editor responsável: Luis Pugni

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño

www.mtcolor.es

Um

 

Julius Churchward, representante da famosa firma de advogados de Londres com o mesmo nome, possuía um repertório de expressões faciais a que podia recorrer em função da natureza das notícias que tivesse para comunicar aos seus clientes aristocráticos. Uma era a compreensiva mas grave, que utilizava quando tinha que informar que uma herança era, substancialmente, inferior à esperada. Também tinha a compassiva mas aflita, que utilizava para a descendência insatisfatória e para os incumprimentos de promessa. E, por último, restava a de uma aflição indefinida, quando desconhecia a natureza exacta do problema. Era esta terceira opção a que tinha adoptado desta vez, de pé na soleira da casa que lady Amelia Fenton tinha em Bath, já que desconhecia por completo o conteúdo da carta que ia entregar.

O senhor Churchward tinha viajado de Londres no dia anterior, passando a noite em Newbury para continuar a viagem com as primeiras luzes da alvorada. Para empreender tal viagem em pleno Inverno, com o Natal à porta, devia existir uma certa urgência. O sol da manhã aquecia as paredes de pedra das casas de Brock Street, porém, o ar era gélido e o senhor Churchward tremeu sob o casaco, desejando que a menina Sarah Sheridan, dama de companhia de lady Amelia, ainda não estivesse a tomar o pequeno-almoço.

Uma criada primorosamente vestida convidou-o a entrar para a sala, o que recordava uma visita, durante a qual, dois anos atrás, tinha comunicado à menina Sheridan a infeliz notícia de que o seu irmão Frank não deixara propriedades para que pudesse sustentar-se. Recordava também outra vez, três anos antes, em que se tinha encontrado na triste obrigação de comunicar que lorde Sheridan tinha deixado apenas uma atribuição insignificante para que a sua filha pudesse escapar da penúria. A menina Sheridan assumira a notícia com força e tinha-lhe respondido que, na verdade, ela tinha muito poucas necessidades materiais, o que tinha ganho a admiração do senhor Churchward.

Desde aí, vinha lamentando a sua situação. Uma dama da posição da menina Sheridan não deveria ver-se reduzida a trabalhar como dama de companhia, nem sequer para uma parente tão benevolente como a sua prima, lady Amelia. Tinha a certeza de que lady Amelia era demasiado generosa para fazer com que a menina Sheridan se sentisse desprezada; simplesmente, era uma situação a que nunca deveria ter chegado. Durante anos, tinha albergado no seu coração cavalheiresco a esperança de que a menina Sheridan encontrasse um marido adequado, já que era jovem e não carecia de atributos físicos, mas tinham-se passado três anos e engrossava as já nutridas filas das solteironas.

Cabeceou, pesaroso, enquanto esperava na sala luminosa de lady Amelia. Tentava não ter favoritismos, já que não teria sido justo para com o resto dos seus clientes, no entanto, no caso da menina Sarah Sheridan, fazia uma excepção.

A porta abriu-se e Sarah avançou para ele, com a mão estendida, como quem cumprimenta um amigo querido em vez de um portador de notícias duvidosas.

– Querido senhor Churchward! Como está? A sua visita é um prazer inesperado!

Ele não tinha tanta certeza. A carta que levava pesava como uma pedra nas suas costas. Contudo, tanto pessimismo pareceu-lhe quase absurdo à luz do dia. A sala estava cheia de sol, iluminando a menina Sheridan dos pés à cabeça, porém, era uma mulher cujo rosto e cuja figura podiam ser mais graciosos em plena luz do sol. De facto, a sua pele branca e rosada parecia irradiar frescura e a sua figura esbelta parecia realçar-se com aquele leve vestido de musselina.

– Como está, menina Sheridan? Espero que se encontre bem de saúde.

O senhor Churchward aceitou a cadeira que lhe oferecia e aclarou a garganta. Surpreendia-o descobrir que estava nervoso, demasiado nervoso até para se permitir conversar sobre a viagem ou o tempo, de modo que abriu a pasta e tirou um envelope branco.

– Perdoe-me por abordar este assunto sem rodeios, mas é que me pediram que lhe entregasse esta carta. O modo como me chegou este pedido é bastante extraordinário, porém, talvez fosse melhor que, antes que lho explicasse, lesse primeiro a carta...

O senhor Churchward deu-se conta de que estava com rodeios. Os bonitos olhos azuis de Sarah estavam cravados nele com uma expressão de vaga surpresa e, ao segurar no envelope entre as mãos, ouviu-a conter a respiração.

– Mas se for...

– Do seu falecido irmão, sim – respondeu, tentando adoptar a sua expressão solene, válida para qualquer ocasião, mas convencido de que só parecia um homem ansioso a quem lhe escapava o controlo da situação. – Talvez se lesse o que lorde Sheridan lhe deixou escrito...

A menina Sheridan não fez menção de abrir o envelope, mas examinava, atentamente, a escrita a tinta preta, enquanto o sol arrancava brilhos de ouro e âmbar ao cabelo que escapava da sua touca.

– Conhece o conteúdo da carta, senhor Churchward?

– Não, menina – respondeu, quase em tom de recriminação, como se Francis Sheridan tivesse cometido uma estupidez por não o pôr ao corrente.

Ela olhou para ele brevemente e, em seguida, aproximou-se da secretária. O senhor Churchward ouviu o som do papel ao ser rasgado pelo abre-cartas e sentiu um alívio enorme. Logo conheceriam o pior...

Havia silêncio na assoalhada. O tinido da porcelana na cozinha, o som de vozes a trocar palavras chegava até aos seus ouvidos. Olhou em seu redor. As estantes estavam carregadas de livros, que lembravam Blanchland e livros que Sir Ralph Covell tratara sem cuidado ao herdar a casa do seu segundo primo, lorde Sheridan. Livros que Sarah tinha recuperado para o seu novo lar.

A menina Sheridan continuava em silêncio e foi sentar-se na poltrona que ficava em frente ao lugar que o senhor Churchward ocupava. Deixou cair a carta no seu colo e olhou para ele nos olhos.

– Senhor Churchward, julgo que deveria ler o conteúdo da carta.

– Muito bem, menina – respondeu, com certa apreensão.

Ele começou a ler com secura:

 

Querida Sal, se receberes esta carta, será porque eu morri e preciso que me faças um favor. Lamento ter que to pedir, mas é porque confio mais em ti que em qualquer outra pessoa, portanto aqui vai: tenho uma filha. Sei que te surpreenderá sabê-lo e lamento não te ter dito antes, todavia, se quiseres que te diga a verdade, pensei que nunca terias que descobrir. O pai sabia, é claro... foi ele quem se ocupou de resolver tudo. Mas se ele tiver falecido e eu também, a menina necessita que alguém se ocupe dela e por isso recorro a ti. Churchward contar-te-á o resto. A única coisa que fica por fazer é agradecer-te e pedir a Deus que te abençoe.

 

O teu irmão que te adora,

Frank.

 

Ela suspirou. Ele suspirou. Os dois pensavam, de modos diferentes, no inconsciente Frank Sheridan, que fora pai de uma filha com tanta irresponsabilidade, que se tinha despedido do mundo sem, provavelmente, ter deixado nada ou quase nada previsto para o seu futuro. O senhor Churchward imaginava-o a rabiscar aquela carta antes de sair para se juntar à Companhia das Índias Orientais numa tentativa de fazer fortuna...

A voz de Sarah arrancou-o dos seus pensamentos.

– Bom, senhor Churchward, pode trazer mais luz a este mistério, tal como Frank sugere?

Ele suspirou pela segunda vez.

– Confesso-lhe menina, que sabia da existência da menina Meredith. O seu falecido pai... – hesitou. – Lorde Sheridan acudiu-me há dezassete anos para me pedir que tratasse de tudo para uma menina e eu pensei que...

– Pensou que a menina era filha dele? – deduziu Sarah. Por um instante, o senhor Churchward teria jurado que vira brilhar algo no olhar da menina Sheridan, algo inapropriado numa jovem que acabava de se ver confrontada com a prova de um comportamento impróprio na sua família.

– Bom, eu pensei que... – balbuciou, consciente de que ninguém, muito menos um advogado, deveria fazer conjecturas daquele tipo.

– Uma hipótese natural – respondeu ela, amavelmente, – sobretudo, porque Frank não podia ter mais de dezoito anos naquela época.

– A irreflexão dos jovens... – disse, vagamente, e, de repente, deu-se conta de como era inadequado falar de tal coisa com uma jovem solteira. Pigarreou e subiu os óculos. Não queria ter que lhe dar toda aquela informação, porém, não tinha outro remédio, portanto, quanto mais depressa, melhor. – A menina foi adoptada por uma família numa povoação perto de Blanchland, milady. O falecido lorde Sheridan pagou uma anuidade ao doutor John Meredith enquanto viveu e... e deixou-lhe uma soma no seu testamento. O doutor Meredith morreu no ano passado e, nessa altura, a sua viúva e a sua filha ainda viviam perto de Blanchland.

– Recordo-me do doutor Meredith – disse Sarah. – Era um homem amável. Tratou de mim quando tive papeira. E também julgo recordar que tinha uma filha... uma linda menina que devia ter menos sete ou oito anos que eu. Estava num colégio. Lembro-me que toda a gente dizia que o bom doutor devia ter alguma receita adicional...

Sorriu com tristeza ao dar-se conta de que o mistério da receita do médico tinha ficado esclarecido.

A chegada das bebidas, café para o senhor Churchward e chá para ela, criou uma pausa natural na conversa e deu ao advogado a oportunidade de avançar.

– Peço-lhe que me desculpe por ser o portador de tais notícias, menina Sheridan...

– Não tem que desculpar-se, senhor Churchward – Sarah sorriu. – Isto não é culpa sua. Contudo, conforme deduzo pela carta de Frank, você devia entrar em contacto comigo caso a menina Meredith necessitasse de ajuda. Em que sentido posso ajudá-la?

O senhor Churchward parecia angustiado.

Das suas pastas, tirou uma segunda carta. Era mais pequena que a primeira, o papel, de qualidade inferior, a escrita, redonda e infantil.

– Recebi esta carta há três dias, menina Sheridan. Por favor...

De novo, Sarah voltou a ler em voz alta:

 

Estimado senhor;

 

Escrevo-lhe porque necessito, desesperadamente, de ajuda e não sei a quem acudir. A minha mãe disse-me que o falecido lorde Sheridan lhe deu o seu endereço, indicando-lhe que entrasse em contacto consigo se alguma das duas precisasse de ajuda. Peço-lhe que venha visitar-me a Blanchland para que possa pô-lo ao corrente das nossas dificuldades e receber o seu ansiado conselho.

 

A sua mais obediente criada,

Miss Olivia Meredith.

 

Houve um silêncio. O senhor Churchward tinha consciência de que não tinha que se sentir tão incomodado, visto que ocupar-se de filhos ilegítimos e das dificuldades que estes pudessem atravessar era uma das tarefas mais habituais que a sua firma devia enfrentar. No entanto, era a primeira vez que se encontrava com a situação de um irmão indolente pedir ajuda à sua irmã mais nova em nome da sua filha. Frank Sheridan fora sido um homem cordial, porém, irresponsável e negligente, que tinha posto a sua irmã numa posição bastante difícil.

– A menina Meredith não menciona a natureza exacta das suas dificuldades – disse Sarah, pensativa, – e quando Frank escreveu esta carta, não podia saber de que tipo de ajuda poderia precisar...

– O que deve ter sido muito difícil para ele, sem dúvida – respondeu o senhor Churchward, embora a sua expressão parecesse dizer o contrário. – Desejou fazer o melhor para a sua filha, sem saber em que circunstâncias poderia chegar a encontrar-se.

Sarah franziu o nariz.

– Receio que não consigo ver tudo com clareza, senhor Churchward. Poderíamos revê-lo mais uma vez? Vou pedir mais café e mais chá.

O criado acudiu de novo com outra bandeja e Sarah serviu as chávenas.

– Recapitulemos – disse: – o meu falecido irmão deixou-lhe uma carta que deveria entregar-me, caso a sua filha, a menina Meredith, lhe solicitasse a sua ajuda. Suponho que Frank pretendia que a sua filha não ficasse sozinha no mundo se ele falecesse.

– Suponho que assim fosse, milady.

– E a menina Meredith não pediu ajuda até há três dias, não é verdade?

O senhor Churchward assentiu.

– Qualquer contacto com o doutor Meredith e a sua família cessou após a morte do seu pai, milady. Ouvi dizer que lorde Sheridan lhes deixou uma soma de dinheiro... – apertou os lábios ao recordar que se tratava de uma soma considerável, – para que a menina não carecesse de nada no futuro. A razão pela qual agora considerou necessário entrar em contacto connosco...

– Talvez a ajuda que precisa não seja de carácter económico. Além disso, é a minha sobrinha, senhor Churchward, independentemente das circunstâncias do seu nascimento.

– Certamente, milady – suspirou o senhor Churchward, com a sensação de que acabavam de lhe dar uma reprimenda. – Este assunto é muito irregular e não me agrada nada que tenha que voltar para Blanchland. É uma desgraça.

Uma vez mais, o advogado julgou ver um brilho estranho nos olhos da menina Sheridan.

– É verdade que Frank me pede muito.

– Certamente, milady – respondeu ele, ferventemente, tremendo ao pensar em Sir Ralph Covell, primo do falecido lorde Sheridan, que herdara Blanchland Court depois da morte de Frank. Nos três anos posteriores, tinha transformado o lugar numa notória fonte de iniquidade: jogo, bebedeiras, orgias... As histórias não cessavam. Era impossível imaginar que a menina Sarah Sheridan, solteirona respeitável e pilar da sociedade de Bath pusesse o pé naquele lugar.

– O seu primo, Sir Ralph Covell, continua a viver em Blanchland, menina Sheridan?

– Assim creio – respondeu, com frieza. – Custa-me ouvir as coisas que se contam de Blanchland, senhor Churchward. É uma casa tão bonita que é uma verdadeira pena que nela haja tanta maldade.

Ele aclarou a garganta.

– Precisamente por isso, menina Sheridan, seria, totalmente, inapropriado que voltasse lá. Se o seu irmão soubesse o que Covell ia fazer com a sua casa, nunca o teria sugerido. Além disso, também não lhe pediu que fosse ver a menina Meredith em pessoa – acrescentou. – Poderia aconselhá-la através de um representante, talvez...

Churchward interrompeu-se quando Sarah se levantou para se aproximar da janela. As árvores sem folhas que se alinhavam ao longo da rua projectavam fios de sombra sobre o pavimento. Uma carruagem passou ao largo.

– Talvez alguém pudesse representar os seus interesses no Blanchland – repetiu Churchward ao não obter resposta de Sarah, embora esperasse, quase com desespero, que não lhe pedisse que fosse ele essa pessoa. A sua esposa não o toleraria.

– Não, senhor Churchward. Frank deixou-me esta responsabilidade só a mim e tenho que honrar o seu desejo. É claro que aceitarei encantada o conselho que possa oferecer-me quando tiver descoberto a natureza exacta do problema da menina Meredith. Imagino que não será difícil localizar a jovem e ver de que modo posso ajudá-la.

O senhor Churchward sentiu vergonha pelo enorme alívio que as suas palavras lhe tinham proporcionado. Além disso, a menina Sheridan parecia tão decidida que era difícil discutir com ela, apesar da sua relativa juventude, mas, mesmo assim, sentia-se, absurdamente, culpado, algo que tentou afastar arrumando os seus papéis. Contudo, ainda restava mais uma notícia.

– Tenho que lhe dizer, milady, que tomei a liberdade de enviar uma mensagem à menina Meredith para lhe assegurar que recebera a sua carta. Por acaso, cruzei-me com o meu mensageiro a caminho daqui e confirmou-me que já tinha estado em Blanchland.

Houve uma pausa e Sarah arqueou as sobrancelhas.

– E?

O senhor Churchward parecia compungido.

– Receio que não foi capaz de localizar a menina Meredith. A jovem foi vista pela última vez à porta de Blanchland Court, há dois dias. Desde então, ninguém voltou a vê-la. A menina Meredith desapareceu.

 

 

Mais tarde, enquanto voltava para Londres, o senhor Churchward recordou que se esquecera de falar com a menina Sheridan sobre a terceira carta, a que Francis Sheridan lhe tinha pedido que entregasse ao conde de Woodallan. O seu estado de espírito, que tinha estado bastante baixo desde que saíu de Bath, animou-se um pouco. Woodallan era o padrinho de Sarah, um homem de bom senso, quase o único naquela história. Era uma pena que ocorresse ao senhor Sheridan colocar a sua irmã numa situação tão indigna, porém, pelo menos, tinha tido o bom senso de pedir a um homem da estatura moral de Woodallan apoio para ela. Por um momento, endireitou-se no lugar para pedir ao condutor que desse a volta, todavia, naquele momento viu uma placa para Maidenhead e voltou a recostar-se com um suspiro. Estava cansado e já muito perto de casa e, ao fim e ao cabo, a menina Sheridan não demoraria a descobrir a participação do seu padrinho.

 

 

Lady Amelia já tinha saído para tratar das suas coisas matinais quando o senhor Churchward partiu para Londres, de modo que Sarah não teve a oportunidade de falar com a sua prima sobre o sucedido. Talvez até fosse bom, já que a sua primeira intenção fora contar-lhe tudo, quando na verdade talvez fosse melhor reflectir um pouco antes. Frank não lhe tinha pedido que guardasse segredo sobre o conteúdo da carta, mas Amelia era a pessoa menos discreta que conhecia e a história da sua sobrinha estaria na boca de toda a Bath assim que Amelia estivesse ao corrente.

Sentou-se na beira da cama e pensou em Frank e no seu pai, encarregando-se da criação da sua neta e mantendo-o em segredo. Provavelmente, nenhum dos dois tinha tido intenção de lho dizer nunca, mas talvez Frank tivesse tido alguma premonição a respeito do seu próprio fim ao embarcar para a Índia pela última vez. Pelo menos, devia ter-lhe servido de consolo pensar, enquanto o assaltavam as febres num lugar tão longínquo, que tinha feito algo, nem que fosse apressada e irreflectidamente, para o futuro de Olivia.

Enfim... podia ficar ali sentada todo o dia, mas tinha recados para fazer: devia ir buscar uns laços à costureira e os ramos de flores para o baile que Amelia organizara para a noite seguinte. Trocou a sua touca de renda por um chapéu simples, pôs uma capa curta escura e desceu rapidamente as escadas.

A senhora Anderson, governanta de lady Amelia, parecia andar a rondar as escadas com um ar de preocupação no seu rosto de feições doces. Assim que a viu chegar, aproximou-se.

– Aconteceu... Aquele cavalheiro trazia-lhe más notícias, menina Sarah?

Sarah, apertando o laço do chapéu debaixo do queixo diante do espelho, sorriu. As notícias corriam como a pólvora e uma visita do advogado da família não podia passar despercebida.

– Receio que ninguém me tenha deixado uma fortuna, Annie! – exclamou, sorridente. – O senhor Churchward veio só para me falar de um pedido que lhe fez o meu irmão há uns anos, todavia, nada digno de menção, receio.

A expressão da senhora Anderson foi de desilusão. Juntamente com o resto das serviçais da casa, estava convencida de que era uma vergonha que a menina Sheridan fosse a parente pobre, sendo uma verdadeira dama como era, de boa educação e comportamento impecável. Não que lady Amelia tratasse a sua prima como se fosse um caso de caridade, porém, era a menina Sarah quem insistia em fazer os recados e alguns trabalhos que não eram dignos dela, algo que queria, precisamente, fazer naquele momento.

– Quer que vá buscar os legumes, já que tenho que sair? – perguntou. – É a um passo da florista e...

– Não, menina Sarah – respondeu a senhora Anderson, com firmeza. Uma coisa era que levasse um ramo de rosas e outra que carregasse com couves-flor e alfaces, portanto atravessou o hall e abriu-lhe a porta. Justamente naquele momento, a figura esbelta de um cavalheiro passava pela porta.

– Ena, menina Sarah! Acaba de passar o senhor Tilbury! Se se apressar, talvez a acompanhe ao centro.

– Obrigada pelo aviso, Annie – respondeu Sarah. – Se caminhar, suficientemente, devagar, vou perdê-lo antes que possa ver-me. Espero que não lhe ocorra voltar-se!

A senhora Anderson suspirou enquanto a via descer as escadas e pôr-se a andar devagar pela Brock Street em direcção ao Circus. O gosto era coisa de cada qual, no entanto, na sua opinião casar-se com um cavalheiro rico como o senhor Tilbury sempre era muito melhor que ser uma pobre solteirona. Infelizmente, a menina Sheridan era demasiado especial para se contentar com um casamento de conveniência. O senhor Tilbury era um cavalheiro já de certa idade, viúvo e com filhos já adultos, e tinha que reconhecer que um pouco aborrecido, mas nada pode ser perfeito...

Fechou a porta e, enquanto reparava que a criada deixara uma pequena mancha num dos degraus da escada, voltou para a cozinha, pensando nos pretendentes da menina Sheridan. Não é que Bath pudesse oferecer muitas diversões, porém, havia uns quantos oficiais reformados que adorariam pedir a sua mão se ela os tivesse incitado minimamente. Além disso, também havia Sir Edmund Place, um homem inválido, mas muito rico. E também o jovem lorde Grantley... talvez até demasiado jovem, contudo, ardentemente apaixonado pela menina Sheridan. Lady Grantley tinha afastado imediatamente o seu cordeiro do perigo, mas Augusta Grantley nunca seria nem metade da dama que a menina Sarah era.

Enfim... ainda havia uma ou outra esperança. A irmã de Cook, que era a governanta de lady Allerton, ouvira mencionar na sua casa que uns quantos recém-chegados tinham sido cotados no Registo de Bath, entre os quais destacava o visconde Renshaw, filho do Conde de Woodallan. Este tinha vindo acompanhado do seu bom amigo Greville Baynham, um dos pretendentes de lady Amelia... Ainda maquinando tudo aquilo na cabeça, chamou a criada e deu-lhe um bom sermão pela sua forma tão descuidada de limpar.

 

 

O sujeito daquelas reflexões, ignorante totalmente que o pessoal da sua prima andava a traçar planos para ela, comprara dois laços cor-de-rosa para o corpete do vestido de baile de Amelia e saía naquele momento da florista com dois lindos ramos de rosas. Por muito que tentasse, o sucedido naquela manhã não deixava de lhe vir à cabeça. Uma sobrinha com dezassete anos, quando ela só tinha vinte! Frank, onze anos mais velho que ela, tinha começado a frequentar a companhia feminina cedo. Quem seria a mãe de Olivia? Sarah deteve-se na esquina da rua. Não seria a mulher do médico, pois não? A senhora Meredith parecia tão correcta...

Consciente de que estava a especular com malícia, sorriu. Decerto que Churchward se surpreendera com o seu modo de reagir. Perdida nos seus pensamentos, desceu da calçada e alguém tropeçou, violentamente, nela, deixando-a quase sem respiração. As rosas caíram desordenadamente ao chão e Sarah perdeu o equilíbrio; de facto, teria caído ao chão se um braço não a tivesse agarrado pela cintura.

– Mil perdões, menina! – exclamou uma voz masculina. – Que desajeitado fui!

O cavalheiro soltou a sua cintura e agachou-se a apanhar as rosas, todavia, era já tarde demais. Uma carruagem que avançava pela rua a passo rápido cortou a cabeça a metade delas.

– Oh, não! – exclamou Sarah, agachando-se com a intenção de apanhar as que ficaram intactas, mas até essas estavam inutilizadas, já que as pétalas se tinham sujado. Amelia ia ficar furiosa. As rosas vermelhas eram o motivo central da decoração do baile e a florista tinha-as cultivado especialmente para a ocasião. Oxalá tivesse deixado que as levassem com o resto do pedido, mas sentira tanta vontade de caminhar pelas ruas invernais da cidade carregando nos braços tão bonita pincelada de cor...

– Por favor, menina, saia da estrada que a vão atropelar!

O cavalheiro agarrou-a pelo braço e puxou-a com firmeza.

Sarah subiu à calçada e olhou para ele, furiosa.

– Agradeço-lhe muito a preocupação, cavalheiro, no entanto, é uma pena que não pensasse no perigo antes de condenar à morte as minhas rosas!

O cavalheiro não respondeu imediatamente, mas olhou para ela, arqueando uma só sobrancelha de um modo bastante curioso. O seu olhar era escuro e directo e estudou-a, desde o chapéu meio inclinado até aos seus sapatos práticos, detendo-se nas suas faces avermelhadas e nas curvas do seu corpo sob a capa curta. Sarah levantou o queixo, incomodada. A sua experiência com cavalheiros era bastante limitada, mas não lhe custara reconhecer que aquele era um desavergonhado.

De figura atlética e estatura considerável, ia vestido com uma elegância pouco comum numa sociedade tão conservadora como a de Bath. Aquele devia ser o verniz de uma urbe como Londres, pensou, recordando as descrições que Amelia lhe fizera dos anos que passara na capital e dos cavalheiros tão atraentes que assistiam aos seus bailes e recepções. Aquele em concreto tinha o cabelo loiro e usava-o algo despenteado pela brisa do Inverno e a sua cor era um contraste vivo com o olhar escuro com que a estudava. Um sorriso começou a desenhar-se nos seus lábios quando se deu conta de como estava zangada.

– Só posso desculpar-me, menina – respondeu. – Estava tão ensimesmado a admirar as belezas desta cidade... – os seus olhos brilhavam, divertidos, – que não me apercebi de nada.

Sarah sentiu vontade de sorrir, porém, conteve-se. Havia qualquer coisa naquela situação a que era surpreendentemente difícil resistir. Talvez fosse um encanto indefinível ou talvez uma afinidade que era ainda mais inquietante por ser inesperada. Aquele cavalheiro emanava uma confiança em si mesmo e uma vitalidade que o faziam parecer diferente dos outros. Bath estava cheia de doentes e talvez esse facto constituísse o carácter vital daquele homem.

Mas o mais estranho de tudo era que lhe era vagamente familiar. Aquela mistura de cabelo claro e olhos escuros era pouco corrente e, sem se dar conta, ficara a olhar para ele com fixidez.

– Peço-lhe que me desculpe, cavalheiro, mas conhecemo-nos? – perguntou-lhe, franzindo ligeiramente o sobrolho. – Há algo em si que me é familiar...

Era já tarde demais quando reparou que podia interpretar mal a sua pergunta. Tinha estado a pensar em voz alta e mordeu um lábio, envergonhada.

O cavalheiro arqueou um pouco mais a sobrancelha e respondeu, não sem cinismo:

– Adula-me, menina! Certamente, poderíamos ser muito bons amigos se quisesse.

Sarah corou.

– Essa não é a minha intenção, cavalheiro! Nunca tentaria conhecer alguém de um modo tão impróprio, muito menos um cavalheiro que é, sem dúvida, um insolente! Bom dia!

Antes que tivesse tido tempo para se voltar, já estava plantado diante dela.

– Espere! – pediu-lhe, apoiando uma mão no seu braço. – Perdoe-me, menina. Não era a minha intenção ofendê-la.

Sarah desceu o olhar até à sua mão e ele retirou-a imediatamente.

– Pois foi o que me pareceu!

– Claro que não! – respondeu, e teria parecido, verdadeiramente, arrependido se não fosse pelo brilho de admiração e divertimento que havia no seu olhar. – Pretendia precisamente o contrário... – mas não continuou ao encontrar-se com o olhar furioso de Sarah. – Deve permitir que me desculpe pelas minhas más maneiras e pelas rosas... Espero que não seja difícil substituí-las.

Disse-o num tom de alguém que nunca teria dificuldades em pagar duas dúzias de rosas, pagar por duas dúzias de rosas, e Sarah, a quem cada vez lhe custava mais continuar zangada, respondeu-lhe com uma severidade que a fez sentir-se orgulhosa:

– Receio que estas eram as últimas, senhor – disse, em tom glacial. – Foram cultivadas especialmente para a ocasião, e mesmo que não fosse assim, não posso permitir andar a comprar flores com displicência. E agora, se me desculpar...

O cavalheiro decidiu ignorar as suas palavras e pôs-se a andar ao seu lado.

– Espero que não tenha sofrido nenhuma maleita no nosso encontro, menina – disse. – Fui muito desconsiderado por não lho perguntar antes. Talvez devesse acompanhá-la à sua casa para ficar mais tranquilo.

Sarah olhou para ele, surpreendida e perguntou-se até que ponto ia ter que ser cortante para que deixasse de segui-la.

– Não é necessário que me acompanhe. Estou perfeitamente bem.

– Mas não é adequado para uma dama caminhar sozinha pelas ruas da cidade – disse ele. – Tenho a certeza de que Bath não será mais liberal que Londres nesse sentido, mas, mesmo que o fosse, tenho a certeza de que as matronas mais respeitáveis da cidade não aprovariam tal comportamento.

Uma vez mais, Sarah esteve prestes a sorrir. Aquele homem era escandaloso, porém, com um encanto ao qual era muito difícil resistir.

– Tenho a certeza de que até você sabe, senhor, que causa menos especulação sobre uma dama vê-la caminhar sozinha pela rua que na companhia de um completo desconhecido! E como esse é o caso, vou continuar sozinha. Que tenha uma agradável estadia na nossa cidade!

E dito isto, despediu-se com uma leve inclinação de cabeça e afastou-se, desafiando-o a segui-la com cada linha do seu corpo.

 

 

Guy, visconde de Renshaw, viu-a afastar-se com passo decidido e um sorriso aflorou os seus lábios. Viu a dama chegar à esquina da rua e trocar umas palavras com um cavalheiro que vinha na outra direcção e qual não foi a sua surpresa ao dar-se conta de que o cavalheiro em questão era o seu bom amigo Greville Baynham. Uma sorte que a sociedade de Bath estivesse tão bem entretecida.

– Lamento ter demorado tanto – desculpou-se Greville perante o seu amigo, com um sorriso. – Vi alguns amigos com quem me detive. Espero que tenhas encontrado com que te entreter.

– Certamente – respondeu Guy, vendo Sarah perder-se de vista. Tinha uma figura esplêndida, pensou, tanto que bem podia desafiar qualquer das belezas de maior fama de Londres. E os seus olhos azuis naquele rosto oval eram magníficos... Então, deu-se conta de que Greville tinha dito algo e aguardava a sua resposta.

– Estava a perguntar-te se quererias ir a banhos nas termas – repetiu o seu amigo, olhando para ele surpreendido, – embora me dê a impressão de que encontraste outras atracções mais do teu gosto... Bath é um pouco aborrecido, sobretudo nesta época do ano.

– Nem tanto, amigo – respondeu. – Diz-me, Grev, quem é a dama com quem estavas a falar agora mesmo?

Greville franziu o sobrolho.

– A dama? Ah, referes-te à menina Sheridan? Mais vale que poupes o teu latim se pensaste seduzi-la! Não olhará duas vezes para uma erva daninha como tu.

Guy desatou a rir.

– Acredito em ti, embora achasse curioso que julgasse conhecer-me. De facto, pensava ter-me enganado com ela... refiro-me a que pensava que se calhar não era uma dama até me dar o balde de água fria mais forte que experimentei em toda a minha vida – franziu um pouco o sobrolho. – Sheridan disseste... que o diabo me confunda! Pois claro que a conheço!

Greville desatou a rir.

– Não acredito em ti!

– Falo a sério, Grev – Guy parecia exultante. – A menina Sheridan não é a irmã do falecido lorde Sheridan? E afilhada do meu pai, além disso! Há anos que não a vejo, mas tem que ser ela. Mas se éramos amigos em pequenos!

– Raios...! Como invejo a tua sorte.

– Que coincidência! – exclamou. – Tu conhece-la, portanto, poderás dar-me o seu endereço...

Greville gemeu.

– Não o faças, Guy! A menina Sheridan é prima de lady Amelia Fenton e Amelia esfolar-me-á vivo se tentares seduzir Sarah.

Guy sorriu. Ouvira falar da paixão sem esperança que o seu amigo sentia por lady Amelia, sobretudo na noite anterior, em que o seu amigo tinha tomado uns copos a mais e não parara de se lamentar pela crueldade do género feminino. Guy imaginara que a sua estadia em Bath fosse bastante chata, sobretudo porque a estação em que as termas se enchiam até transbordarem já tinha passado, porém, enganava-se. A sua sociedade parecia conter várias possibilidades excitantes. Greville parecia decidido a continuar com o seu assalto a lady Amelia e agora acabava de aparecer em cena a menina Sheridan.

Recordou o brilho dos seus olhos azuis enquanto a detinha e teve que sorrir. Reparara nela assim que a vira sair da florista, carregada com aquelas rosas. Sob aquele chapéu recatado, o seu cabelo tinha a cor das folhas no Outono: nem castanho, nem dourado, nem âmbar, mas uma mistura dos três. Mexia-se com uma graça inata, com passo ligeiro e gracioso e, apesar da sua aparência recatada, não era dissimulada. Não tinha podido ocultar o seu bom humor, presente no brilho dos seus olhos e no traço dos seus lábios, e, apesar de toda a sua suposta indignação, sabia que se sentira atraída por ele.

Era uma pena que o seu pai fosse o seu padrinho, embora bem vistas as coisas, também lhe dava a desculpa perfeita para se apresentar, novamente, diante dela.

– Sabes se a menina Sheridan alguma vez teve intenção de se casar? – perguntou ao seu amigo, guardando as mãos nos bolsos.

– Não tem dinheiro – explicou, em poucas palavras. – Aqui em Bath, toda a gente procura casar-se bem, portanto Sarah dedica-se a acompanhar lady Amelia, a escrever-lhe as cartas e essas coisas...

Ao ver o ar de desagrado na cara de Guy não terminou a frase.

– A menina Sheridan, dama de companhia? Impossível!

– Não é bem isso – respondeu ele, em defesa de Amelia. – Lady Amelia é muito unida à sua prima... são mais amigas que qualquer outra coisa. É que Amelia é a criatura mais doce que conheço e não...

Guy levantou ao alto as mãos como se se rendesse.

– Pronto, amigo! Não é necessário que te batas em duelo comigo para defenderes a dama! Não era a minha intenção subjugar a generosidade de lady Amelia, mas acho... – hesitou... – incongruente que a menina Sheridan se encontre nessa situação. Não sei se o meu pai saberá. Tenho a certeza de que, pelo menos, lhe teria oferecido um dote...

– No entanto, tenho a certeza de que tu lhe terias oferecido outra coisa – interveio o seu amigo.

– Não vou negar que essa possibilidade me tenha passado pela cabeça, mas o meu pai não gostaria. Ouve, Grev, se todas as rosas de Bath estivessem vendidas, onde as comprarias para uma dama?

Greville olhou para ele como se tivesse perdido o juízo.

– Rosas no Inverno?

– Sei que é um pouco tarde para rosas, mas... achas que poderia enviar alguém para as comprar em Bristol?

– Podes comprar o que quiseres se tiveres dinheiro – respondeu Greville, – embora não saiba por que te darias ao trabalho...

– Pelo favor de uma dama.

– Para ganhares os seus favores, quererás dizer! – replicou Greville, pesaroso. – Não posso fazer nada para evitá-lo, mas aviso-te, Guy: a menina Sheridan não é tonta e vai adivinhar as tuas intenções. E quanto a lady Amelia... bom, eu não gostaria de estar no teu lugar se cair em desgraça – então, reparou na rosa vermelha que Guy tinha resgatado do desastre e que ainda trazia numa mão. – E tens que andar pela rua com isso? – perguntou-lhe. – Que o diabo te carregue, Guy! Pareces um maldito dandy!