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Editado por HarperCollins Ibérica, S.A.

Núñez de Balboa, 56

28001 Madrid

 

Albert regressa a casa

Título original: Carrying Albert Home

© 2015, Homer Hickam

© 2016, para esta edição HarperCollins Ibérica, S.A.

Tradutor: Fátima Tomás da Silva

 

Reservados todos os direitos, inclusive os de reprodução total ou parcial em qualquer formato ou suporte.

Esta edição foi publicada com a autorização de HarperCollins Publishers LLC, New York, U.S.A.

Esta é uma obra de ficção. Nomes, personagens, lugares e situações são produto da imaginação do autor ou são utilizados ficticiamente, e qualquer semelhança com pessoas, vivas ou mortas, estabelecimentos comerciais, acontecimentos ou situações são pura coincidência.

 

Design da capa: Adam Johnson

Imagens da capa: © Glasshouse Images/Alamy (carro); Lake County Discovery Museum/UIG/Bridgeman Images (caimão); cortesia de Don O’Brien (passageiros); cortesia de The Library of Congress Prints and Photographs Division (fundo)

 

ISBN: 978-84-16502-65-3

 

Conversão ebook: MT Color & Diseño, S.L.

Sumário

 

Página de título

Créditos

Sumário

Dedicatória

Personagem

As etapas da viagem

Introdução à viagem

Primeira parte

Capítulo 1

Capítulo 2

Capítulo 3

Capítulo 4

Capítulo 5

Capítulo 6

Capítulo 7

Segunda parte

Capítulo 8

Capítulo 9

Capítulo 10

Capítulo 11

Capítulo 12

Capítulo 13

Capítulo 14

Terceira parte

Capítulo 15

Capítulo 16

Capítulo 17

Capítulo 18

Capítulo 19

Capítulo 20

Capítulo 21

Quarta parte

Capítulo 22

Capítulo 23

Capítulo 24

Capítulo 25

Capítulo 26

Capítulo 27

Quinta parte

Capítulo 28

Capítulo 29

Capítulo 30

Capítulo 31

Capítulo 32

Capítulo 33

Capítulo 34

Capítulo 35

Sexta parte

Capítulo 36

Sétima parte

Capítulo 37

Capítulo 38

Capítulo 39

Oitava parte

Capítulo 40

Capítulo 41

Capítulo 42

Nona parte

Capítulo 43

Capítulo 44

Epílogo

Pós-escrito final

Agradecimentos

Fotografias relativas à viagem

 

 

Para Frank Weimann, que compreendeu esta história antes de mim.

Personagem

Personagem

As etapas da viagem

 

Introdução à viagem

 

PRIMEIRA PARTE

 

Como começou a viagem

 

Durante a qual Elsie e Homer decidem levar Albert para casa, o galo também vai, Homer começa a ver a confusão em que se meteu, Elsie dança sozinha, e Homer e Albert assaltam um banco.

 

 

SEGUNDA PARTE

 

Como Elsie se converteu numa radical

 

Durante a qual John Steinbeck tem uma participação especial, Homer é confundido com outro, Elsie e Albert travam uma batalha duvidosa.

 

 

TERCEIRA PARTE

 

Como Elsie fez a Rota do Trovão, Homer escreveu um poema, e Albert transcende a realidade

 

Durante a qual Elsie transporta álcool de contrabando, Homer conhece um poeta louco e a sua concubina, e começamos a perceber que Albert poderia ser o símbolo de uma coisa mais transcendental.

 

 

QUARTA PARTE

 

Como Homer aprendeu as lições do beisebol, e Elsie, as de enfermeira

 

Durante a qual Homer e Albert jogam beisebol, Elsie faz de enfermeira, e todos sofrem um castigo cruel.

 

 

QUINTA PARTE

 

Como Elsie se afeiçoou à praia, e Homer e Albert ingressam na Guarda Costeira

 

Durante a qual Elsie descobre qual é o seu verdadeiro lugar no mundo, Homer e Albert travam uma batalha terrível e sangrenta contra os contrabandistas e outros piratas do mar.

 

 

SEXTA PARTE

 

Como Albert voou

 

Durante a qual Homer descobre a Geórgia, Elsie treina para piloto acrobático sem cinto de segurança, e um Homer apreensivo e um Albert exultante lançam-se a sulcar os céus.

 

 

SÉTIMA PARTE

 

Como Homer e Elsie salvaram um filme, e Albert fez de crocodilo

 

Durante a qual Homer volta a ser confundido com outro, Elsie vê o seu marido com novos olhos, e Albert deixa metaforicamente a sua pele a interpretar um crocodilo no grande ecrã.

 

 

OITAVA PARTE

 

Como Homer, Elsie e Albert sobrevivem a um furacão (a um a sério, assim como ao que se agitava nos seus corações)

 

Durante a qual Ernest Hemingway aparece em cena, Elsie está encantada e angustiada ao mesmo tempo com quase tudo, incluindo Albert, e Homer enfrenta a fúria de um furacão.

 

 

NONA PARTE

 

Como por fim levaram Albert a casa

 

Durante a qual Elsie deve tomar uma decisão terrível, Homer não sabe como ajudá-la, mas ajuda-a, Buddy Ebsen aparece em cena, Albert é levado a casa, e a viagem acaba, e, de certo modo, continua..

 

 

Epílogo

 

Pós-escrito final

 

Agradecimentos.

 

Fotografias relativas à viagem

Introdução à viagem

 

Até a minha mãe me ter falado de Albert, não sabia que o meu pai e ela tinham empreendido uma viagem perigosa de aventuras para o levar para casa. Não sabia como se tinham casado, nem o que os levara a ser como eu os conhecia. Ignorava, além disso, que a minha mãe guardava no coração um amor imperecível por um homem que se tornara um ator célebre de Hollywood, e que o meu pai conhecera esse homem depois de enfrentar um furacão poderoso, não só nos trópicos, mas também no interior da sua alma. Soube estas e outras coisas graças à história de Albert, que me revelou facetas desconhecidas não só dos meus pais, mas também da vida com que me brindaram e da existência que todos vivemos até ao momento em que deixamos de entender o porquê.

A viagem que os meus pais empreenderam teve lugar em 1935, o sexto ano da Grande Depressão. Naquela época, viviam em Coalwood pouco mais de mil pessoas, a maioria delas, tal como os meus pais, casais jovens que tinham crescido em torno das minas de carvão. Como tinham feito anteriormente os seus pais e os seus avós, os homens levantavam-se diariamente para ir trabalhar na mina, de onde extraíam o carvão em bruto usando brocas, explosivos, picaretas e pás, enquanto, por cima deles, o teto gemia, rachava e, às vezes, cedia. A morte era um acontecimento tão comum que entre os homens e as mulheres daquela aldeia da Virgínia Ocidental reinava uma certa melancolia quando se despediam diariamente. E, no entanto, em troca do salário e da casa que recebiam da empresa, despediam-se todas as manhãs, e os homens iam-se embora para se juntarem à longa fila de mineiros que, com passo pesaroso e o balanço das marmitas, se dirigiam para o subsolo profundo e escuro.

Enquanto os seus maridos trabalhavam nas minas, as mulheres de Coalwood esforçavam-se para manter as casas que a empresa lhes proporcionava limpas do eterno pó. Comboios fumegantes carregados de carvão passavam pelos carris montados a escassos metros das casas, levantando nuvens densas de um pó sufocante e preto como o ébano que conseguia entrar por muito que fechassem as portas e as janelas. A gente de Coalwood respirava pó em cada fôlego e via-o a subir numa neblina cinzenta quando caminhava pelas ruas. O pó saltava das almofadas quando apoiavam nelas a cabeça cansada e elevava-se numa nuvem cintilante quando afastavam as mantas depois de uma noite de descanso. As mulheres levantavam-se todas as manhãs para lutar contra o pó e, no dia seguinte, voltavam a levantar-se e enfrentavam-no novamente depois de mandarem os seus maridos para a mina para que continuassem a gerar mais pó.

Criar os filhos era coisa de mulheres. Naqueles tempos, a escarlatina, o sarampo, a gripe, o tifo e diversas febres por identificar varriam rotineiramente as zonas mineiras, matando por igual crianças fortes ou fracas. Havia muito poucas famílias que não tivessem perdido algum filho. A incerteza quotidiana quanto aos seus maridos e filhos deixava marcas nas mulheres. Tinham de passar poucos anos para que a doçura ingénua e espontânea das raparigas da Virgínia Ocidental se transformasse na camada dura e áspera que caracterizava as mulheres das zonas mineiras.

Esse era o mundo que habitavam Homer e Elsie Hickam, os meus pais antes de serem os meus pais. Um mundo que Homer aceitava. E que Elsie odiava.

Mas era lógico.

Afinal, ela tinha passado uma temporada na Florida.

 

cortesia

 

O meu irmão, Jim, e eu nascemos muito depois de os meus pais terem feito a viagem que este livro narra. Passámos a nossa infância em Coalwood nas décadas de 1940 e 1950, quando a povoação, em pleno crescimento, começava a desfrutar de comodidades como o telefone e as ruas asfaltadas. Até havia televisão e, sem ela, talvez eu nunca tivesse ouvido falar de Albert. No dia em que ouvi falar pela primeira vez da sua existência, estava deitado na carpete da nossa sala de estar, a ver uma reposição da série da Walt Disney sobre Davy Crockett, que fizera deste pioneiro a figura mais popular dos Estados Unidos, mais popular inclusive do que o Presidente Eisenhower. Não havia, de facto, quase nenhuma criança na América do Norte que não quisesse ter o chapéu de pele de guaxinim característico de Davy, e isso incluía-me a mim, embora eu nunca conseguisse vir a tê-lo. A minha mãe gostava demasiado de animais selvagens para cair naquela crueldade absurda.

A minha mãe entrou na sala de estar quando Davy e o seu amigo Georgie Russell estavam a atravessar o bosque a cavalo pelo nosso ecrã de vinte e uma polegadas a preto e branco. Georgie cantava uma canção sobre Davy, o rei da fronteira, que com apenas três anos tinha matado um urso com as suas próprias mãos. Ficava no ouvido e, como milhões de crianças em todo o país, eu sabia-a de cor. Depois de passar algum tempo a olhar para a televisão em silêncio, a minha mãe disse:

— Eu conheço-o. Foi ele que me deu Albert.

Em seguida, deu meia-volta e voltou a entrar na cozinha.

Como estava concentrado em Davy e em Georgie, o seu comentário demorou um pouco a penetrar o meu cérebro infantil. Quando puseram os anúncios, levantei-me para ir ter com ela e encontrei-a na cozinha.

— Mamã, disseste que conheces alguém da série de Davy Crockett?

— Aquele homem que estava a cantar — respondeu, enquanto deitava um bocado de manteiga numa frigideira.

Pela massa grumosa que havia numa taça próxima, deduzi que íamos jantar os seus famosos pastéis de batata.

— Georgie Russell? — perguntei.

— Não, Buddy Ebsen.

— Quem é Buddy Ebsen?

— O que estava a cantar na televisão. Dança muitíssimo melhor do que canta. Conheci-o na Florida, quando vivia com o meu tio Aubrey, o Rico. Quando me casei com o teu pai, Buddy mandou-me Albert como presente de casamento.

Eu nunca tinha ouvido falar de Buddy, nem de Albert, mas tinha ouvido falar com frequência do tio Aubrey, o Rico. A minha mãe acrescentava sempre o adjetivo «rico» ao seu nome apesar de afirmar que ele tinha perdido o dinheiro todo no crash da Bolsa, em 1929. Também tinha vista uma fotografia do tio Aubrey, o Rico: apoiado num taco de golfe, de cara redonda e olhando para um sol radiante com os olhos semicerrados, o tio Aubrey, o Rico, usava um boné ao estilo de O Grande Gatsby, um pulôver elegante por cima de uma camisa com o colarinho desabotoado, calças de golfe e sapatos de cordões castanhos e brancos. Atrás dele havia uma caravana minúscula de alumínio que, pelo visto, lhe servia de casa. Eu tinha a suspeita de que o tio Aubrey, o Rico, não necessitava de muito dinheiro para ser rico.

Tentando esclarecer-me, perguntei:

— Então… Conheces Georgie Russell?

— Se Buddy Ebsen for Georgie Russell, acho que o conheço.

Fiquei boquiaberto. Quase aturdido. Desejava contar aos outros miúdos de Coalwood que a minha mãe conhecia Georgie Russell, o que era quase como conhecer Davy Crockett pessoalmente. Agora, sim, iam invejar-me!

Albert esteve alguns anos connosco — acrescentou a minha mãe. — Quando vivíamos na outra casa, rua acima, à frente da subestação. Antes de tu e o teu irmão nascerem.

— Quem é Albert? — perguntei eu.

O olhar da minha mãe enterneceu-se.

— Nunca te falei de Albert?

— Não, senhora — disse eu, enquanto ouvia o fim de um anúncio e a explosão de mosquetes de pederneira.

Davy Crockett tinha voltado à ação. Orientei uma orelha na sua direção.

A minha mãe, vendo como a televisão me puxava, dispensou-me com a mão.

— Logo te conto. É bastante complicado. O teu pai e eu… Enfim, levámo-lo a casa. Era um caimão.

Um caimão! Abri a boca para perguntar mais, mas ela abanou a cabeça.

— Logo te conto — repetiu e voltou para os seus pastéis de batata.

E eu voltei para Davy Crockett.

A minha mãe cumpriu a sua promessa e, ao longo dos anos, contou-me muitas vezes como tinham levado Albert para casa. O meu pai, instigado por ela, contava-me também, de vez em quando, a sua versão dos factos. Os seus relatos, quase sempre desordenados e enfeitados com pequenas variações desde a última vez que eu os tinha ouvido, evoluíram até se converterem na história vívida, mas mítica e desconexa, de um jovem casal que, juntamente com um caimão muito especial (e um galo que não vinha ao caso), teve uma aventura maravilhosa enquanto viajava para o sul sob um sol dourado como o de um pintor paisagista e uma lua poética de mercúrio, ou assim o imaginava eu.

Depois de o meu pai ter ido dirigir as minas de carvão do Céu e a minha mãe o ter seguido para dizer a Deus como tinha de tratar do resto dos assuntos, uma voz dentro da minha cabeça, ténue, mas insistente, dizia-me que devia escrever a história da sua viagem. Quando fiz caso dos seus sussurros e comecei a juntar todas as peças, entendi o porquê. Tal como uma bela flor se abre para cumprimentar o novo dia, assim me foi revelada uma verdade oculta. A história de como os meus pais tinham levado Albert para casa era mais do que um relato fantasioso de uma aventura de juventude. Depois de tudo encaixado, era o seu testemunho do maior (e possivelmente o único) verdadeiro dom divino: o estranho e maravilhoso sentimento a que inadequadamente chamamos «amor».

Homer Hickam (filho)

Primeira parte

1

 

Quando Elsie saiu para o jardim para ver porque é que o seu marido a chamava aos gritos, viu Albert deitado de costas na erva, com as patinhas abertas e a cabeça inclinada para trás. Pensou que lhe tinha acontecido algo de mal, mas, quando o caimão levantou a cabeça e lhe sorriu, Elsie compreendeu que estava perfeitamente bem. Sentiu um alívio palpável, quase arrasador. Afinal, Albert era quase o que mais amava no mundo. Ajoelhou-se e coçou-lhe a barriga enquanto ele agitava as patas de prazer e mostrava um sorriso cheio de dentes.

Com pouco mais de dois anos, Albert media mais de um metro e vinte, o que era muito para a sua idade, conforme afirmava um livro sobre caimões que Elsie tinha lido. Cobria-o uma camada grossa de escamas de um maravilhoso tom verde-azeitona, com umas riscas amarelas de lado que, conforme dizia o livro, desapareceriam com o tempo. Tinha uma série de bicos pontiagudos ao longo do lombo e até à ponta da cauda, e o ventre liso e bege. Os seus olhos expressivos eram dourados, mas de noite brilhavam com um bonito tom vermelho. Tinha um focinho lindo, com as narinas perfeitas na ponta para poder respirar enquanto repousava na água e um enternecedor prognatismo superior que deixava a descoberto várias filas de dentes de um branco deslumbrante. Era, na opinião de Elsie, o caimão mais bonito do mundo.

Albert, naturalmente, também era inteligente, tão inteligente que seguia Elsie pela casa como um cão, e, quando ela se sentava, subia-lhe para o regaço e deixava-se acariciar como um gato doméstico. Era uma sorte que fosse assim, pois Elsie já não podia ter cães nem gatos devido à tendência de Albert para lhes fazer emboscadas saindo repentinamente de debaixo da cama ou do pequeno lago de cimento que lhe construíra o pai de Elsie. A verdade era que nunca tinha comido nenhum gato ou cão, mas estivera perto de o fazer. Tão perto que ambas as espécies tinham declarado como território proibido a casa e o jardim dos Hickam pelo menos durante um século.

Depois de sorrir ao seu «pequenino», como gostava de lhe chamar, Elsie olhou para o seu marido, que deixara de gritar e a olhava com uma expressão que lhe pareceu de ligeira irritação. Também reparou em que estava vestido de forma um pouco estranha, o que a levou a perguntar:

— Homer, onde estão as tuas calças?

Homer não respondeu de forma direta. Disse:

— Ou o caimão ou eu. — E, em seguida, disse-o outra vez, lentamente e em voz baixa. — Ou… o caimão… ou… eu.

Elsie suspirou.

— O que se passou?

— Estava sentado na sanita a fazer as minhas coisas quando o teu caimão saiu da banheira e me agarrou pelas calças. Se não tivesse conseguido tirá-las e fugir para o jardim, de certeza que me teria matado.

— Eu diria que, se Albert quisesse matar-te, já o teria feito há muito tempo. Bom, o que queres que faça?

— Escolhe. Ou ele ou eu. Já o disse.

Já estava dito. Há quanto tempo, perguntou-se Elsie, andaria a pensar naquilo? No entanto, não tinha outra resposta para aquela pergunta além da que deu.

— Vou pensar nisso.

Homer não podia acreditar.

— Vais pensar em se ficas comigo ou com esse caimão?

— Sim, Homer, é precisamente o que vou fazer — respondeu Elsie e, depois de virar Albert, fez-lhe sinal de que a seguisse. — Vamos, pequenino. A mamã tem um frango delicioso para ti na cozinha.

Homer olhou para Elsie com incredulidade enquanto a sua mulher conduzia Albert até ao interior da casa. Jack Rose, vizinho e colega na mina, aproximou-se da cerca e pigarreou educadamente.

— Vais apanhar frio, filho — disse. — Talvez devesses vestir umas calças.

A cara de Homer ficou púrpura.

— Ouviste aquilo?

— É provável que o tenha ouvido toda a gente deste lado da rua.

Homer compreendeu que ia tornar-se alvo de chacota. Os mineiros não desperdiçavam uma oportunidade de gozar com alguém e o facto de Homer ter saído para o jardim de bóxeres e perseguido pelo caimão da sua esposa ia facilitá-lo.

— Ajuda-me, Jack — suplicou-lhe. — Não o contes a ninguém.

— Está bem — respondeu Rose afavelmente —, mas não garanto nada quanto à patroa. — Olhou por cima do ombro, para a janela, de onde a senhora Rose os olhava com um grande sorriso.

Compreendendo que estava condenado, Homer baixou a cabeça.

Naquela noite, durante o jantar, Homer parou de comer o seu feijão-encarnado com broa de milho.

— Já pensaste? Sobre mim e Albert?

Elsie não olhou para ele.

— Ainda não.

Homer estava visivelmente apavorado.

— Os outros mineiros vão gozar comigo por me ter feito fugir de bóxeres.

Elsie continuou sem olhar para ele. Olhava fixamente para o seu feijão, como se estivesse a transmitir-lhe alguma mensagem.

— Tenho uma solução — disse. — Deixa a mina. Sai daquele buraco sujo e vamos viver para um sítio mais limpo.

— Sou mineiro, Elsie. É o meu ofício.

Ela olhou por fim para ele.

— Não é o meu.

Elsie dormiu toda a noite de costas para Homer e, na manhã seguinte, depois de lhe preparar o pequeno-almoço e lhe entregar a marmita, não lhe deu um beijo, nem lhe desejou que voltasse para casa são e salvo. Homer tinha a certeza de que era o único mineiro de Coalwood inteira que naquele dia fora para o trabalho sem que a sua mulher lhe desejasse boa sorte e essa certeza pesou-lhe como uma laje. Além disso, um mineiro chamado Collier Johns gozou com ele por ter fugido para o jardim sem calças. Malicioso, perguntou-lhe:

— Tens assim tanto medo do caimão de Elsie que te caem as calças pelo susto, Homer?

Ao que os outros mineiros responderam com uma gargalhada geral acompanhada de palmadas nos joelhos. Homer deveria ter respondido com um comentário divertido ou obsceno, era o que todos esperavam. Mas não disse nada, o que tirou toda a graça à piada e acabou com os sarcasmos. Os mineiros começaram a suspeitar que Homer estivesse doente, gravemente doente. Mais tarde, falariam disso nas escadas do edifício da empresa. Chegaram à conclusão de que a origem da sua doença era a sua esposa, uma rapariga muito estranha que, embora encantadora, era das que podiam arruinar a vida a um homem exigindo-lhe demasiado.

Dois dias depois, Elsie saiu para o jardim, onde Homer estava sentado numa cadeira enferrujada que salvara do ferro-velho da empresa. Parou diante dele e, depois de respirar fundo, anunciou:

— Vou desfazer-me de Albert.

Aliviado, Homer disse:

— Ótimo! Obrigado. Vamos levá-lo para o rio. Estará bem lá. Terá imensos peixinhos para comer e um ou outro cão ou gato que se aproxime para beber água.

Elsie apertou os lábios, uma expressão que (Homer sabia-o muito bem) significava que estava zangada.

— No rio, morreria congelado no inverno — disse. — É preciso levá-lo de volta a casa, a Orlando.

Era uma proposta surpreendente.

— A Orlando? Pelo amor de Deus, mulher! Orlando deve ficar a uns mil e duzentos quilómetros daqui ou mais!

Elsie levantou o queixo com ar desafiante.

— Até podiam ser duzentos mil.

— E se me recusar?

A sua mulher respirou fundo outra vez.

— Levo-o eu mesma.

Homer quase sentiu a terra a tremer sob os pés.

— E como o farias?

— Não sei, mas logo penso nalguma coisa.

Derrotado imediatamente, Homer perguntou:

— É preciso levá-lo a Orlando? Não poderíamos deixá-lo numa das Carolinas? Faz calor lá, pelo que ouvi dizer.

— Até Orlando — respondeu Elsie. — E, quando chegarmos lá, teremos de procurar o sítio perfeito.

— Como vamos saber qual é o sítio perfeito?

Albert saberá.

Albert é um réptil. Não sabe nada.

— Bom, pelo menos, ele tem desculpa, não?

— Estás a dizer que eu não sei nada?

— Estou a dizer que nenhum de nós os dois sabe nada. Que certamente tudo em que acreditamos não tem uma ponta de verdade. Que, mesmo que tu dissesses um milhão de coisas, e eu, outro milhão, nem assim nos aproximaríamos do que realmente é verdade.

— Isso não tem sentido.

— É a resposta mais sincera que posso dar-te.

Depois de a sua esposa voltar a entrar em casa, Homer ficou a pensar, sentado na sua cadeira velha. Aquela foi uma das primeiras vezes em toda a sua vida que sentiu medo. Uma semana antes, o teto da mina retumbara como um disparo de espingarda e uma placa gigantesca de rocha estivera prestes a esmagá-lo, e, no entanto, aquele incidente não o tinha assustado minimamente. Não o tinha contado a Elsie, mas não tinha dúvida de que o sabia. Elsie parecia saber tudo o que tentava esconder-lhe. Ele, no entanto, confessou Homer a si mesmo, sabia muito pouco da mulher com quem se casara e que o assustara ao ameaçar ir à Florida com ou sem ele.

Compreendeu que só podia fazer uma coisa: pedir conselho ao homem mais eminente que conhecia, o incomparável William Laird, o Capitão, herói da I Guerra Mundial, diplomado em Engenharia pela Universidade de Stanford e dono e senhor de Coalwood.

E assim, sem que ele o soubesse, começou a viagem.

2

 

Depois de fazer um turno inteiro subterrâneo, Homer tomou banho nos balneários da mina, vestiu um fato-macaco lavado, calçou umas botas e disse ao empregado do escritório que queria ver o Capitão. O empregado indicou-lhe a porta e o Capitão gritou «Entre!» quando Homer bateu. Com o boné nas mãos, aproximou-se da mesa. O Capitão, um homem enorme, com as orelhas como as de um elefante africano, levantou o olhar e franziu o sobrolho.

— O que raio se passa, filho?

— É a minha mulher, Capitão.

— Elsie? O que aconteceu a Elsie?

— Quer que a leve a ela e ao caimão a Orlando.

O Capitão recostou-se na cadeira e olhou para Homer.

— Isso tem alguma coisa a ver com teres fugido para o jardim de bóxeres?

— Sim, senhor, tem.

O Capitão inclinou a cabeça.

— Muito bem, filho. Eu estou sempre disposto a ouvir uma boa história e tenho a sensação de que essa pode ser interessante.

Depois de ocupar a cadeira que o Capitão lhe ofereceu, Homer contou-lhe como Albert o perseguira até ao jardim, o que ele dissera e o que Elsie dissera. O Capitão, que o ouvia atentamente, abandonou a sua expressão divertida e, semicerrando os olhos, adotou a pouco e pouco outra de puro interesse. Quando Homer concluiu o seu relato, disse:

— Sabes o que acho que é isso, Homer? É o kismet ou algo muito parecido.

Homer já tinha ouvido falar do kismet, mas não tinha a certeza do que era e assim o disse. O Capitão inclinou-se para diante e o seu tamanho abateu-se sobre Homer como se desse modo quisesse desfazer as suas dúvidas.

— Há alturas em que temos de fazer coisas que são absurdas e que, no entanto, têm todo o sentido do mundo. Parece-te que tem sentido o que digo?

— Não, senhor.

— Claro que não. Mas isso é o kismet. Obriga-nos a mudar de rumo bruscamente, a tomar caminhos estranhos e a afastarmo-nos do que aprendemos que era a vida e o seu fim. Talvez essa viagem seja precisamente uma ocasião de descobrires essas coisas.

— Está a dizer que devia ir?

— Sim, claro. Dou-te já as tuas férias anuais de duas semanas e tens a minha permissão para pedir cem dólares à empresa para financiar a viagem.

— Mas isso é muito dinheiro! Não poderei devolvê-lo.

— Claro que sim. És um daqueles homens que conseguem sempre pagar uma dívida. Agora, falemos de Elsie. Deixaste-lhe claro que é a pessoa mais importante da tua vida?

— Acho que não, Capitão — respondeu Homer sinceramente —, mas é. — Coçou a cabeça. — O problema é que não sei se eu sou a pessoa mais importante da vida dela.

— Bom, talvez tenha sido por isso que surgiu essa viagem, para que os dois descubram que tipo de casal estão destinados a ser. Quando vão?

— Não sei. Até agora, ainda não tinha a certeza de que ia.

— Vão amanhã de manhã. Não deixes para amanhã o que podes fazer hoje. — O semblante do Capitão tornou-se sombrio. — Fica sabendo que vou sentir a tua falta. Graças a ti, aqueles tontos da Três Oeste estão a tirar muito carvão, e é muito provável que voltem aos maus hábitos assim que te fores embora. — Encolheu os ombros. — Mas eu desenrasco-me. Um jovem a caminho da aventura em climas tropicais! Oxalá estivesse no teu lugar!

— Eu disse-lhe a verdade, Capitão — respondeu Homer. — Tenho a sensação de que esta viagem vai ser uma das experiências mais penosas da minha vida.

— É muito possível — concordou o Capitão. — Mais uma razão para a fazeres. Dito isto, dentro de duas semanas quero ver-te outra vez na Três Oeste de cara radiante.

Homer levantou-se, agradeceu ao Capitão, que lhe fez uma saudação militar, e saiu para o ar poeirento, sem reparar na fila de homens do turno da tarde que se dirigia para o elevador da mina. Seguindo a lógica apresentada pelo Capitão, tomou rapidamente algumas decisões. Ir da Virgínia Ocidental até à Florida com uma esposa e um caimão era uma tarefa árdua. A primeira coisa que decidiu foi descartar a viagem de comboio ou de autocarro. Em nenhum daqueles meios de transporte aceitariam um caimão como passageiro. Não, teriam de ir de carro até à Florida. Felizmente, tinha um bom carro: um Buick de 1925, um descapotável de quatro portas que tinha comprado recentemente ao Capitão.

A sua decisão seguinte conduziu-o ao economato da empresa, onde comprou a crédito um alguidar grande. De seguida, foi até ao guiché dos pagamentos e pediu cem dólares em duas notas de cinquenta. Quando ia para casa com o alguidar ao ombro, chamou a atenção de várias senhoras que estavam sentadas nos seus alpendres. Os seus maridos eram mineiros do turno da noite, e elas dispunham de algum tempo para se sentarem a ver as pessoas a passar. A maioria cumprimentou-o ao passar e uma que era nova na povoação até lhe perguntou se queria parar um pouco e beber um chá gelado. Homer cumprimentou-as a todas respeitosamente levando uma mão ao chapéu, mas não parou. Homer Hadley Hickam era um jovem muito charmoso: media um metro e oitenta e dois, e penteava o cabelo liso e preto para trás com gel Wildroot. Tinha as costas largas e os músculos de um mineiro, um sorriso de lado e uns olhos muito azuis que despertavam o interesse de muitas mulheres. No entanto, elas não lhe interessavam desde que conhecera Elsie Lavender e se casara com ela.

Colocou o alguidar no banco traseiro do Buick, que estava estacionado diante da casa, e entrou para informar a sua mulher das decisões que tomara. Depois de espreitar no quarto e não a encontrar lá, descobriu Elsie (o seu nome completo era Elsie Gardner Lavender Hickam) sentada no chão de linóleo gretado da casa de banho. Tinha as costas apoiadas contra a banheira e estava a abraçar o seu caimão, que a olhava com adoração. Além disso, estava a chorar.

Sem contar com os filmes tristes e as cebolas, que Homer recordasse, Elsie só tinha chorado realmente noutras duas ocasiões: quando aceitara casar-se com ele e quando abrira a caixa que continha Albert e lera o cartão de um tipo que conhecera na Florida, chamado Buddy Ebsen. Em ambos os casos, Homer continuava sem saber porquê. E, como não tinha a certeza de como devia reagir naquele terceiro arrebatamento de pranto, disse, logicamente, o que não devia.

— Se não tiveres cuidado, essa coisa ainda te arranca um braço.

Elsie levantou a cara, e, ao vê-la, Homer sentiu um aperto no coração. Os seus olhos castanhos, normalmente radiantes, estavam inchados e avermelhados, e as suas maçãs do rosto altas e proeminentes (que segundo ela eram herança do seu sangue Cherokee) estavam molhadas pelas lágrimas.

— Não vai fazer nada disso — disse —, porque Albert me ama. Às vezes, penso que é o único nesta vida que me ama.

Lembrando-se do conselho do Capitão, Homer disse:

— Tu és a pessoa mais importante da minha vida.

— Não, não sou — replicou ela. — Nem de longe. Primeiro, está o Capitão. E, depois, a mina.

— A mina não é uma pessoa.

— No teu caso, é como se fosse.

Homer não quis discutir, sobretudo porque sabia que tinha muito a perder. Portanto, disse-lhe algo que sabia que podia fazê-la muito feliz ou que resolveria aquele assunto de uma vez por todas.

— Vamos para a Florida amanhã de manhã — anunciou.

Elsie afastou da face uma madeixa molhada.

— Estás a brincar?

— O Capitão deu-me permissão para ir, desde que volte dentro de duas semanas. Comprei um alguidar galvanizado no economato para pôr Albert. Está no banco traseiro do Buick. Também pedi um adiantamento de cem dólares. — Enfiou a mão no bolso e tirou as duas notas.

A cara de pasmo de Elsie mostrou a Homer que acreditava nele. Afinal, não se pedia duas notas de cinquenta dólares à empresa se não se tivesse a firme intenção de as usar.

— Se ainda quiseres ir, acho que devias ir arrumar as tuas coisas — disse.

Elsie observou o seu marido. Em seguida, levantou-se e pôs Albert na banheira.

— Está bem — disse. — Vou fazê-lo. — Roçou Homer ao passar ao seu lado para ir para o quarto.

Ao ouvir a porta do armário a abrir-se e, um instante depois, o som dos cabides, Homer sentiu que um pequeno ataque de pânico lhe subia pelas costas e se lhe agarrava aos ombros. Quando olhou para Albert, o caimão parecia estar a julgá-lo com o olhar.

— A culpa disto tudo é tua — disse-lhe Homer. — E daquele maldito do Buddy Ebsen.

3

 

Todas as manhãs, quando acordava e abria os olhos, Elsie surpreendia-se um pouco ao descobrir que era a esposa de um mineiro. Afinal, era justamente o que quisera evitar ao apanhar um autocarro com destino a Orlando apenas uma semana depois de concluir o ensino secundário. Ao desembarcar do autocarro, soubera que a sua decisão era acertada. Foi como se entrasse num país maravilhoso, muito belo e ensolarado. O tio Aubrey foi recebê-la à estação, acomodou-a regiamente no banco traseiro do seu Cadillac e conduziu-a como se fosse uma rainha até à sua casa, a casa mais bonita que Elsie jamais vira, embora na fachada houvesse um cartaz a dizer «Vende-se». O seu tio explicou-lhe que tinha perdido muito dinheiro na Depressão, mas que tinha a certeza de que, se Herbert Hoover continuasse a segurar o leme, dentro de pouco voltaria a nadar em abundância.

Elsie arranjou trabalho a servir às mesas num restaurante, inscreveu-se num curso de secretariado e começou a relacionar-se com gente jovem muitíssimo mais interessante do que a que conhecera até então. Gostava sobretudo de um rapaz, um tipo alto e desajeitado chamado Christian «Buddy» Ebsen, cujos pais tinham uma academia de dança no centro de Orlando. Buddy interessou-se por ela desde o princípio. Ao contrário dos outros, que gozavam com ela pelo seu sotaque da Virgínia Ocidental, Buddy sempre foi educado e amável, ouvia-a sempre com atenção, e era muito divertido. Até a levou a conhecer os pais dele e ensinou-a a dançar todas as danças modernas.

Mas Elsie sabia por experiência que as coisas boas não duram para sempre e, efetivamente, Buddy foi-se embora com a sua irmã para Nova Iorque, onde tinha intenção de fazer fortuna como ator e bailarino profissional. Depois de alguns meses sem receber sequer uma carta dele, Elsie teve de reconhecer perante si mesma que provavelmente Buddy não ia voltar. Sentia-se sozinha, tinha saudades do seu lar e, depois de acabar o curso de secretária, apanhou um autocarro de regresso à Virgínia Ocidental. Não para ficar, dissera ao tio Aubrey, só para fazer uma visita, uma visita que já durava três anos e durante a qual, quase inexplicavelmente, se casou com um mineiro chamado Homer Hickam, ex-colega de estudos na Escola Secundária de Gary.

Na manhã a seguir a Albert perseguir Homer até ao jardim, Elsie vira o seu marido a ir para o trabalho e, em seguida, fechara-se na casa de banho para falar com o seu caimão, que habitava quase sempre na banheira. Albert fora um presente surpresa de Buddy, chegara uma semana depois do casamento, dentro de uma caixa de sapatos com buracos e atada com um cordel. Lá dentro, além de um lindo caimão de não mais de um palmo de comprimento, havia um bilhete. «Espero que sejas sempre feliz. Uma coisa da Florida para ti. Com carinho, Buddy.»

Elsie lera tantas vezes aquela mensagem! Perguntava-se se Buddy lhe desejava que fosse feliz porque achava que não podia sê-lo sem ele. E porque lhe mandara uma coisa da Florida que viveria muitos anos, a não ser porque queria que pensasse nele a toda a hora? E, depois, havia o que era talvez o mais importante de tudo, aquelas palavras escritas no seu itálico enlaçado: «Com carinho».

Elsie acariciou distraidamente Albert enquanto pensava no outro homem da sua vida, que, por acaso, era agora o seu marido. A primeira vez que vira Homer, estava a jogar na equipa de basquetebol feminino da Escola Secundária de Gary. Estavam no ginásio da escola e as raparigas da equipa contrária eram da Escola Secundária de Welch, a capital do condado. Durante uma paragem da partida, levantou o olhar para a fila de cima da bancada e viu um rapaz de cara fina que a observava de um modo que a pôs nervosa. Perdeu o passe de uma companheira e teve de se esforçar para recuperar a bola. Em seguida, sem pensar, ignorou as regras, passou a bola entre as pernas, virou-se, deu uma cotovelada à rapariga que a marcava, avançou e fez um lançamento ao cesto com uma só mão, transgredindo todas as regras do basquetebol feminino. O árbitro apitou e a treinadora da Welch quase teve um ataque ao ver a audácia daquela rapariga que se atrevia a tocar noutra jogadora e até a avançar com a bola. Elsie ignorou a agitação. Estava à procura do rapaz que vira, mas sofreu uma deceção ao ver que já se fora embora.

No dia seguinte, estava à espera dela junto do seu cacifo.

— Chamo-me Homer Hickam — disse-lhe. — Queres vir comigo ao baile de sexta-feira?

Foi então que Elsie reparou nos seus olhos. Eram os olhos mais azuis que alguma vira e havia neles uma espécie de fogo frio. Quase sem se dar conta do que fazia, disse-lhe que sim, o que significava que teria de dizer ao capitão da equipa de futebol que mudara de ideias.

Surpreendentemente, quando chegou a sexta-feira, Homer não apareceu. Elsie foi sozinha ao baile e teve de dançar com outra rapariga sem acompanhante enquanto via o capitão da equipa de futebol a dançar com a líder da equipa de animadoras de claque. Morria de vergonha. Durante os dois meses de aulas que se seguiram, viu Homer pelos corredores da escola e em algumas aulas, mas ignorou-o. O pior de tudo era que ele também a ignorava a ela. Em seguida, três dias antes da festa de finalistas, parou-a no corredor e perguntou-lhe:

— Queres casar-te comigo?

Elsie endireitou os ombros, apertando os livros contra o peito.

— Porque quereria casar-me contigo, Homer Hickam? Nem sequer foste ao baile para o qual me convidaste!

— Tive de trabalhar. O meu pai partiu o pé na mina e tive de ir substituí-lo a pôr o carvão no tapete rolante.

— Porque é que não me disseste isso?

— Pensava que sabias.

Elsie abanou a cabeça, perplexa perante a sua estultícia. Em seguida, virou-se e afastou-se.

— Vamos casar-nos! — gritou-lhe ele. — É o destino.

Mas Elsie manteve a cabeça erguida e não se virou. Não acreditava que algo fosse traçado pelo destino, exceto que ela se iria embora das minas assim que tivesse oportunidade, e foi exatamente o que fez. Durante mais de um ano, levou a vida com que sempre tinha sonhado. Passeou de mão dada com um rapaz bonito e distinto, respirou ar puro e encheu-se de sol. Em seguida, sem saber como, encontrou-se de volta à Virgínia Ocidental. E, antes que tivesse tempo de fugir novamente, o seu irmão, Robert, informou-a de que o superintendente da mina de Coalwood queria falar com ela no seu escritório.

— Porque quer ver-me?

— Porque sim. Não devias questionar um grande homem como o Capitão Laird.

Robert levou-a de carro até ao escritório da mina, fê-la entrar no escritório e foi-se embora quando o Capitão o dispensou com a mão.

— Senta-te, por favor — disse educadamente o Capitão.

Elsie sentou-se diante da secretária enorme de carvalho e do homem majestoso sentado atrás dela. Não disse nada porque não sabia o que dizer. O Capitão sorriu-lhe.

— Pedi-te que viesses para poder falar-te de um jovem que trabalha para mim. É um homem muito empreendedor, destinado a chegar ao topo do ofício da mineração. Penso que o conheces bem. É Homer Hickam.

Elsie só se surpreendeu um pouco. Sabia, porque o seu irmão lho tinha contado, que Homer trabalhava para o Capitão.

— Sim, conheço-o — confessou.

O sorriso do Capitão não vacilou.

— És uma jovem encantadora. Entendo perfeitamente que Homer te deseje, mas receio que lhe tenhas partido o coração, o que se repercute negativamente no trabalho dele. Não poderias ajudá-lo a ele, a mim e a esta empresa casando-te com ele? É um pedido muito simples. Tens de te casar com alguém.

— Senhor… — começou a dizer Elsie.

— Por favor, chama-me Capitão.

— Muito bem. Bom, Capitão, eu gosto de Homer, a sério que sim, mas há um rapaz na Florida que… Neste momento, está em Nova Iorque, atrás da fama e da fortuna, mas acho que me ama e é possível que volte.

O Capitão recostou-se na sua cadeira com ar contemplativo e disse:

— Um homem que vai para Nova Iorque em vez de se casar contigo tem de ser muito informal. Tão informal, de facto, que imagino que esteja a divertir-se lá à grande. Já estive muitas vezes em Nova Iorque. Lá, há mulheres, Elsie, mulheres como não imaginas. Algumas até têm o cabelo platinado. — Ao ver que a Elsie lhe tremiam os lábios e lhe humedeciam os olhos, o Capitão perguntou suavemente: — Sabes como é que eu me casei com a minha mulher?

Quando Elsie lhe confessou em voz baixa que não sabia, o Capitão contou-lhe como tinha andado atrás da mulher que era agora a encantadora senhora Laird e que, depois de a pedir em casamento uma dúzia de vezes, ela dissera que só se casaria com ele se tivesse no bolso uma caixa de tabaco de mascar Brown Mule. E ele tinha!

— Isso é o kismet, Elsie. Foi o que fez com que ela dissesse o que disse e com que eu tivesse o que tinha. Entendes? — Saiu de detrás da mesa, sentou-se ao seu lado e deu-lhe algumas palmadinhas no joelho. — Deixa-te guiar pelo kismet, pois é a vontade do Universo.

Elsie tentou entender o que era o kismet, mas custou-lhe um pouco. Sempre tinha acreditado que era Deus quem fazia com que acontecessem as coisas. Nunca lhe tinha ocorrido que houvesse outra coisa a pairar no ar que fizesse o mesmo.

— Olha, filha — continuou o Capitão. — Porque não aceitas pelo menos encontrar-te com Homer em Welch este sábado à noite? Talvez pudessem divertir-se um pouco. Não seria assim tão mau, pois não?

— Suponho que não, senhor — concordou Elsie.

— Muito bem. Vão encontrar-se à frente do cinema Pocahontas, no sábado, às sete da tarde. Tens como chegar lá?

— Sim, senhor. Pode levar-me um dos meus irmãos.

O seu irmão, Charlie, levou-a no calhambeque dele a Welch e lá a deixou. Homer chegou pontualmente, entraram no cinema quase sem falar e viram o filme, que, se não lhe falhava a memória, era Tarzan, o homem macaco. Não deram a mão. Depois, esperaram diante dos armazéns Murphy’s que Charlie fosse buscá-la. Foi então que, sem rodeios, Homer lhe pediu mais uma vez que se casasse com ele.

— Não — respondeu Elsie.

— Por favor… — disse ele. — O Capitão disse que nos daria uma casa, e, em breve, serei capataz. Viveríamos bem.

Desde que falara com o Capitão, Elsie estava terrivelmente triste por causa de Buddy e deixava-se levar pela imaginação. Via-o em Nova Iorque, a sair com imensas mulheres espampanantes e a divertir-se à grande, enquanto ela adoecia de melancolia, primeiro, na Florida e, agora, nos odiosos Montes Apalaches. Levada por um impulso, decidiu deixar o pedido de Homer nas mãos do destino, como lhe tinha aconselhado o Capitão. Ouviu-se a dizer, quase como num sonho:

— Se tiveres uma caixa de tabaco de mascar Brown Mule no bolso, caso-me contigo.

Homer pareceu dececionado.

— Sabes que não masco tabaco.

Elsie sentiu uma pontada de alívio.

Homer enfiou a mão no bolso e tirou uma bolsinha com o desenho de uma mula castanha. Cheirava fortemente a tabaco doce.

— Mas encontrei isto no chão dos balneários da mina. Pensei que talvez fosse de um dos teus irmãos.

Elsie ficou a olhar para a bolsinha. Em seguida, olhou para os olhos faiscantes de Homer e deu-se por vencida. Foi uma das poucas vezes na vida que fez tal coisa.

— Caso-me contigo — disse e desatou a chorar.

Imaginava que Homer encarasse o seu pranto como uma demonstração de alegria, mas, na realidade, era outra coisa muito diferente. Chorava por si mesma, pelo que era e pelo que seria a partir de então: a esposa de um mineiro. Depois daquilo, os dias foram passando, chegou o casamento e passou num abrir e fechar de olhos. Mal recordava ter dito as palavras diante do pastor ou ter deslizado no dedo o anel barato que ficara verde em menos de uma semana.

Depois, escreveu a Buddy para lhe dizer que, se voltasse por fim de Nova Iorque, já não a encontraria em Orlando, senão em Coalwood, na Virgínia Ocidental, casada com outro homem. Ele respondeu mandando-lhe Albert, que Elsie criou no lava-louça da cozinha até que se tornou demasiado grande e, então, mudou-o para a banheira da casa de banho do primeiro andar, a única que havia na casa. Enquanto Homer estava no trabalho, que era quase todo o dia, ela sentava-se com o pequeno caimão e cantava-lhe canções. Também lhe dava a comer insetos e, quando já era suficientemente grande, bocados de frango oferecidos pelo talhante do economato. Levava-o a passear pelo jardim com uma trela, como se fosse um cão, e os mineiros que iam a caminho do trabalho paravam o tempo suficiente para inclinar o capacete para trás e olhar pasmados para ele. O seu pai fez um buraco no jardim das traseiras e revestiu-o de cimento para que Albert tivesse um pequeno lago onde se banhar no verão. Como Homer estava tão atarefado a extrair carvão, Elsie passou mais tempo com Albert do que com o seu marido durante o seu primeiro ano de casados e tinha a impressão de que Homer não se importava.

Albert não demorou a ficar grande e começou a passear lentamente pela casa, a subir de vez em quando para o sofá e a empurrar os candeeiros com a cauda. Quando estava contente ou entusiasmado, fazia um som que parecia «sim-sim-sim». Deitava-se no regaço de Elsie e enroscava-se à sua volta cada vez que tinha oportunidade, de patas para cima para que lhe coçasse a barriga cremosa. Só tinha medo dos trovões. Numa noite em que os trovões troavam como tambores, saiu da banheira, abriu a porta do quarto com o focinho e meteu-se na cama. Quando Homer se virou e se deparou com os olhos vermelhos e brilhantes de Albert, levantou-se de um salto e fugiu apavorado. Tropeçou ao descer pela escada e caiu por cima do corrimão, mas a mesa de apoio de cerejeira da sala de estar amorteceu a sua queda. Elsie, que ouviu o estrépito e os gemidos subsequentes, abraçou Albert por alguns minutos antes de se levantar para ir ver como estava Homer. Ele disse-lhe do chão da sala que estava bem, exceto por uma pancada na anca, mas que a mesa não tinha ficado nada bem e, dado que era propriedade da empresa, teriam de a pagar se não houvesse forma de a arranjar.

— De qualquer modo, nunca gostei dessa mesa — disse Elsie e, quando os trovões remeteram, levou Albert até à banheira e voltou para a cama.

Enquanto estava lá, ouvindo como Homer tentava arranjar a mesa, teve uma ideia. «Se conseguisse levar Homer para a Florida», pensou, «talvez mudasse e se parecesse mais com Buddy».

Agora, depois de Homer ter feito aquela proposta surpreendente, Elsie contemplou o seu armário, pensando no que devia meter na mala. Dava-se conta de que talvez aquilo que o Capitão chamava de kismet estivesse a dar-lhe outra oportunidade de deixar as minas para trás. Não tinha acreditado que Homer estivesse disposto a levar Albert a casa, mas, agora que tinha acedido a passar vários dias na estrada, tinha tempo suficiente para tentar convencê-lo, pelo bem do seu casamento, a não regressarem à Virgínia Ocidental.

E, se aquilo não desse resultado, talvez quando visse como a Florida era bonita se apercebesse de que os malditos Montes Apalaches não passavam de uma feia série de armadilhas.

Mas e se aquilo também não desse resultado?

Enfim, logo pensaria naquilo quando chegasse a altura, mas achava já saber a resposta.

Daquela vez, quando saísse das minas, nunca mais voltasse, independentemente do que o seu marido fizesse.